Viver como Betty Milan

Viver como Betty Milan

 

Betty Milan me disse na segunda (22/4), no lançamento de seu Carta ao Filho, que Mary Del Priore — a historiadora que tem a sexualidade brasileira entre os seus muito temas — tinha acabado de sair dali dizendo, para quem quisesse ouvir, que Betty é a primeira autora brasileira a publicar uma autobiografia.

De fato, nossas escritoras não são especialmente conhecidas pelos relatos autobiográficos, mas se você analisar o conjunto de depoimentos de Clarice Lispector nas muitas entrevistas que concedeu, temos algo que se aproxima do que Betty agora faz, em termos de franqueza e honestidade intelectual.

A própria Betty Milan já tinha navegado nessas águas, a exemplo de muitas autoras. Seu romance satírico o Papagaio e o Doutor (1991) é rigorosamente autobiográfico, mas é ficção, um jorro de liberdade criativa que transforma a experiência de vida numa peça literária urdida com o propósito de encantar, criticar e produzir humor.

Também a presença de Betty na imprensa, como entrevistada e entrevistadora, é conhecida. Fruto de trabalho duro, ela perseguiu, como jornalista, o objetivo de levar a psicanálise ao conhecimento do grande público. Exemplos são o famoso Consultório Sentimental, as matérias que escreveu sobre temas brasileiros e as entrevistas com alguns dos mais importantes nomes da cultura que publicou.

Carta ao filho é diferente.

Em certo sentido, é um livro de confissões. Estão ali, em pormenores, fatos, datas e comentários que ela se permite fazer, em retrospecto e com muita segurança, sobre sua vida e obra. Que, diga-se, se misturam vigorosamente, fato que faz refletir sobre o quão interessante e plena pode ser a existência de uma única pessoa, ou uma pessoa única.

Ela se dirige ao filho adulto, com quem teve um desentendimento, e planeja, em seu relato, tratar da experiência de ser mãe, de seus complexos como filha de imigrantes, de seus sofrimentos e alegrias, da condição de “nômade”, do ardor com que abraçou sua profissão, sua arte e seus amores. Sem filtros, sem tergiversar, sem autoindulgência, numa prosa límpida.

Fala com o mesmo entusiasmo, e aparentemente sem estabelecer ordem de importância, de suas histórias com os pais, com o marido, com o filho, com os amantes, com Lacan, Joãosinho Trinta, Gilberto Freyre e Zé Celso Martinez Corrêa. Para mim, no entanto, o mais tocante são os seus relatos de infância e a clareza de seu projeto amoroso.

Um libertino, por definição, é uma pessoa que trafega acima dos princípios morais de seu tempo, sobretudo em relação à moral sexual. É assim que a autora define o marido, o intelectual alsaciano Alain Mangin, morto em 2004, com quem teve o filho Mathias. E é para ele, o filho, e também para si própria e o mundo, que ela resolve imortalizar os detalhes de sua relação aberta e seus amores.

No centro da divergência entre mãe e filho reside, a meu ver, a questão da fidelidade amorosa. Para ela, a monogamia não existe, embora, como exceção, e por sorte, possa existir. Para ele, o amor incondicionalmente fiel é a única possibilidade. São duas visões e também duas vivências, completamente desiguais, ambas legítimas.

O que me comove — neste espaço tenho confessado lágrimas mas, acredite, são raras — foi a identificação com a bela reconstrução de suas origens familiares, imigrantes árabes em São Paulo. A cadeira de balanço, o relógio, as cadeiras nas calçadas calorentas de Capivari, a turquinha primogênita que odiou sua condição e depois a superou e hoje demonstra tanto orgulho pela família, meu deus, como tudo isso me é tão familiar.

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Edward Pimenta, escritor, colaborador no grupo Abril, autor de O homem que não gostava de beijos.Publicado em http://epimenta.wordpress.com