Um sonho sonoro*
BM ‑ Nosso avô, imigrante libanês, contava histórias das Mil e uma noites. Crescemos ouvindo falar do Alhambra, das cortes nababescas onde havia diamantes, safiras, esmeraldas e rubis. Que relação existe entre as histórias que ele contava, a do Ali Babá inclusive, e o seu interesse pelas pedras?
DM ‑ Vovô era um narrador ímpar. Um dos grandes momentos da infância era escutar as histórias maravilhosas do Oriente. Muitas vezes ele contava em árabe e, por não entender a língua, eu escutava as palavras. Era como um sonho sonoro com imagens fantásticas. Foi com essa escuta que o meu processo de criação começou. Quando passei a trabalhar com as pedras, mais especificamente com o cristal, que é uma pedra com geometrias variadas, associei suas formas ao sagrado da natureza. Esta associação também se origina na admiração de nosso avô pelo esplendor da arquitetura islâmica, que ele nos mostrava em fotos de revistas vindas do Egito. A arquitetura islâmica está ligada a uma geometria sagrada. O quadrado remete à Terra, o redondo ao Céu, as outras formas a outros significados… .Esta geometria, que nos acompanha desde a infância, se configura para mim – brasileira e herdeira do imaginário da cultura mediterrânea –, através do cristal.
Se pensarmos na forma e na contraforma, poderíamos dizer que o cristal seria a forma e a arquitetura islâmica a contraforma de uma mesma geometria. É como se uma se originasse da outra. É como se eu tivesse descoberto o Brasil do Oriente ou o Oriente brasileiro.
BM ‑ Quando e como você entrou nessa via em que está há décadas? Qual o abre-te-sésamo do tesouro que você descobriu?
O sussurro da pedra
DM ‑ Entrei no âmago da pedra por acaso. Um amigo me ofereceu três pedras, eram cristais de quartzo. Fiquei meses olhando, tentando descobrir como penetrar nelas. Um dia entendi que era só ficar à escuta da pedra. Ela sussurrava no meu ouvido o rumo que eu devia seguir. Um rumo que transformou minha vida e me levou a me aprofundar nos mistérios do quartzo. O sussurro da pedra foi o abre-te-sésamo. Ela que me captou e me ofereceu as riquezas do seu cosmos.
BM ‑ A sua primeira grande exposição foi Gênese, no Masp. Gostaria que você falasse dela.
DM ‑ Antes de Gênese, teve a Garden of Light no PSO, em Nova York, em 1988. Foi lá que eu comecei a ver nas pedras um Brasil mítico. Encontrei várias alusões ao Brasil, esta parte das Américas que atraiu muitos marujos de além-mar. Todos vinham em busca do sonho de riquezas incalculáveis. E estas riquezas sempre estiveram aqui. Só era preciso que nós brasileiros as enxergássemos. Éramos cegos, víamos sempre através dos olhares de outros povos. Fiz arte para revelar a beleza das pedras. Mostrar a exuberância das origens, deixar o mistério da pedra se manifestar e curar o homem da petrificação do olhar.
Quanto à Gênese, é uma exposição que associa o processo de criação ao da transformação cristalina, um processo que vai do caos à ordem. Trata-se de um diálogo entre a arte e a natureza. A exposição mostra como o que parece ser um erro é um acerto na escala maior da vida. Ao mesmo tempo, valida o processo artístico como possibilidade de evolução da consciência.
BM ‑ Qual foi a repercussão da Gênese no Brasil e no exterior?
DM ‑ Levei uma das esculturas para Hannover. Causou admiração. Quando usadas como signos, as pedras falam alto, dão sentido ao cosmos.
BM ‑ Na época da Gênese você encontrou o Haroldo de Campos, que inclusive fez um poema para o catálogo. Como foi o encontro e o que ele significou para você?
Cadumbra
DM ‑ Haroldo tem seu poema “Cristal”. Houve um sinergismo entre sua elaboração poética e a minha criação no universo das pedras. Ele brincava com as palavras e eu fui proporcionando a ele ocasiões para que penetrasse mais profundamente na linguagem do cristal. Das conversas entre Haroldo e eu nasceu um livro. Íamos chamá-lo Cristalografia poética. Mas um dia ele ouviu um poema meu, “Cadumbra”,
Cadumdra
cadalambraia
cadalambraia
cadalandumbra
Umbra umbra umbra
cadalambraia
cadalandumbra
Umbra umbra umbra em ai
Umbra em ái
Umbra em ói
Ai em ói
ói em ai
cadalandumbra
cadalandrai.
Ele adorou o poema. Disse que era uma protolinguagem. “Cadumbra” entrou no livro e, pela primeira vez, um poema meu foi publicado. Anos depois ele me contou que várias pessoas achavam que o título e o texto do meu poema eram dele. Eu ri.
BM ‑ Que bela coincidência! Depois da Gênese, foi o Américas Courtyard, uma escultura de grandes proporções na frente do Art Institute, em Chicago. Como foi que você chegou lá?
DM ‑ Outra vez o acaso. Veio para São Paulo uma turma do Cultural Center de Chicago. Estavam fazendo um grande evento intercontinental que se chamava “Reeducação das Cidades”. Me convidaram para falar sobre arte pública e cidade. Este foi o primeiro passo que dei em direção a Chicago. Muitos outros se seguiriam.
BM ‑ Américas Courtyard você fez com o Ary Perez. O que você pretendia com esta escultura e como foi feita?
DM ‑ Ary e eu fomos trabalhando de uma forma bastante orgânica. Ora eu estava começando algum projeto e ele dava um palpite que mudava tudo, ora o inverso. Nós sempre olhávamos para o trabalho do outro. Uma espécie de respeito, amizade e curiosidade. A idéia desta escultura era fazer uma alegoria das Américas, onde não existisse nem um continente superior ao outro. O que isto quer dizer? Que todos os países estariam numa mesma arena, em pé de igualdade. Se chamou Américas Courtyard, que significa pátio das Américas. Acho que esta obra também tem a ver com o desejo de revelar a riqueza que há na diversidade, na unicidade de cada país. Para isso, introduzi na escultura uma variedade imensa de pedras com idades diferentes e cores diversas, evocando os matizes da aquarela da Terra. Ary deu mobilidade a esta obra escultórica. Foi ele que encontrou a solução para fazer com que as pedras pudessem ser movidas de um lado para o outro. A partir disso, e também por um erro de compreensão nossa, surgiu a oportunidade de fazermos infinitas formas com essas pedras. Erro de compreensão, porque eu falei “A”, o Ary entendeu “B”. O resultado, que foi “C”, superou o “A” e o “B” e realmente nos surpreendeu.
BM ‑ O que significou trabalhar com os americanos?
DM ‑ Trabalhar com os americanos fazia parte do sonho da geração dos nossos pais. Um sonho que de alguma forma foi possível realizar, deixando nos EUA a semente de uma visão que subverte a nossa relação com aquele país. Quanto ao trabalho propriamente dito, foi ótimo. Eles são pragmáticos e isso nos obrigou a ser bastante objetivos. O melhor de tudo é que eles gostaram da nossa visão e apostaram nela. Ou seja, bancaram a nossa arte e a promoveram da melhor forma possível. Até hoje essa escultura é citada entre as quatro melhores obras públicas da cidade de Chicago. Junto com Anish Kapoor, Madalena Abramovic…
BM ‑ Depois do Américas Courtyard você teve vários convites no mundo inteiro. Quais os principais e o que o intercâmbio com outras culturas lhe trouxe?
DM ‑ O mais recente foi um trabalho que Ary e eu fizemos em Taiwan. Nele, os rios Amazonas e Danshui alimentam o oceano da sabedoria. De 240 artistas internacionais foram selecionados 12, e nós estávamos entre eles. Trabalhamos com voluntários taiwaneses para a instalação no parque Guandu, em Taiwan. Foi uma experiência inusitada que nos fez ver novas possibilidades artísticas. Nessa instalação, o último toque era dado pela participação e interação do público, que fazia um voto para a Terra. O voto era depositado nos leitos de rios, simbolizados por cordas suspensas em troncos. Os troncos, por sua vez, simbolizavam as árvores que margeavam o rio.
Houve ainda o trabalho de arte e cura que fizemos nos hospitais e em instituições ligadas à saúde na cidade de São Paulo. Temos três obras que exemplificam com clareza a relação que pode haver entre a arte e a cura. O Ventre da vida no metrô Clínicas, Os tempos da cura no Hospital Einstein e a escultura que se encontra no átrio da unidade Fleury do Itaim. A escultura mostra que tanto a saúde quanto a doença fazem parte da vida, e esta é como uma fita de Moebius, ou seja, tem um só lado e uma única superfície.
BM ‑ Gênese, Américas Couryard e depois a suntuosa Ópera das Pedras, em que também o seu talento de poeta se realizou. Como surgiu a idéia de fazer esta ópera, cujo título é perfeito precisamente pelo paradoxo que há nele.
DM – Surgiu quando eu me dei conta das semelhanças entre o processo de criação da pedra e o nosso trajeto. A epopéia das pedras representa metaforicamente o drama humano.
BM ‑ Quais foram as etapas para chegar ao espetáculo de hoje?
DM ‑ O primeiro passo foi um DVD que fiz em parceria com o compositor Marco Antonio Guimarães, músico fundador do grupo Uakti. Descobrir como as pedras falariam, cantariam, expressariam seus sentimentos foi um grande desafio. Para enfrentá-lo, chamei uma equipe de jovens cineastas, e meu estúdio se transformou num laboratório de experimentos que buscavam as várias linguagens da pedra. Essas linguagens foram se configurando. Cada descoberta nos tirava o fôlego e nos dava coragem para continuar.
O DVD foi apresentado no Sesc Pinheiros, em São Paulo, junto com uma instalação de doze entes pétreos, doze ametistas com formas humanas. Levamos três anos para conseguir que fossem garimpadas nos subterrâneos de nosso país. A instalação teve cenografia do Ary Perez. O público a percorria como se entrasse no libreto da ópera.
BM ‑ Depois do DVD você passou para o espetáculo propriamente dito. Como foi isso?
DM ‑ Formou-se uma nova equipe. Convidei o Lee Breuer para codirigir comigo. O Lee é diretor fundador do grupo Mabou Mines, um grupo teatral de Nova York. Quanto aos compositores, foram chegando um após o outro, e hoje a Ópera conta com seis grandes compositores brasileiros: André Mehmari, Badi Assad, Carlinhos Antunes, Clarice Assad, Marco Antonio Guimarãese, Naná Vasconcelos, que trouxe para a Ópera músicas inéditas, músicas que havíamos feito em parceria na década de oitenta, quando eu trabalhei em Nova York.
Esta ópera experimental está sendo concebida como uma instalação de arte com perfil de performance. Poderá ser exibida nos museus do mundo inteiro. O libreto e a cenografia são meus. Na verdade, a cenografia pode ser considerada uma grande escultura cênica. Os figurinos, assinados a quatro mãos, dão início a uma parceria entre a estilista Gloria Coelho e eu. Moda e arte dialogam e surgem figurinos escultóricos deslumbrantes, como que saídos do mundo fantástico das Reinações de Narizinho.
A essa lista de criadores se junta uma equipe de profissionais com uma criatividade à flor da pele, trazendo as soluções mais divertidas. A pedra fala e quebra todas as fronteiras da nossa percepção. O inusitado se impõe. Acreditar na própria imaginação é uma aventura sem retorno
BM ‑ Last but not least, obviamente gostaria que você fizesse uma avaliação do seu trabalho para o Brasil.
DM ‑ Acredito que o Brasil é terra lúcida, digo isso porque sob seu solo existem as maiores formações cristalinas deste planeta. O cristal é uma pedra lúcida, uma pedra com transparência, que aceita ser atravessada pela luz. O nosso subsolo possui uma imensa riqueza. Por que não o respeitamos? Por que deixamos persistir essa política extrativista que se iniciou com a descoberta do Brasil?
Meu trabalho oferece ao povo brasileiro a possibilidade de não se deixar mais colonizar. Despertando, nós podemos existir no mundo como um país cuja riqueza pode servir a todos em vez de beneficiar alguns poucos. Acredito na via quartza como uma via que pode nos curar da nossa cegueira. Por isso, meu trabalho funciona como um abre-te sésamo da Terra Brasilis. As histórias contadas pelo meu avô, as histórias das Mil e uma noites e do tesouro do Ali Babá me fizeram chegar aos cristais deste país e dar voz às pedras para que sejam escutadas no mundo inteiro.
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* Entrevista de Denise Milan para Betty Milan, março de 2010.