Um soldado até o fim

Um soldado até o fim

Revista Veja, 08/07/2009

O significado da soropositividade depende de cada um. Existe o soropositivo que é levado a refletir sobre a existência. Como o escritor Caio Fernando Abreu que, antes de morrer de Aids,  nos legou a frase : “A condição humana é inocente”. Existe, por outro lado,  o que se vale da soropositividade para satisfazer um gozo masoquista. Como o leitor que me escreveu para o Consultório Sentimental.

Diz que é gay e não tem problema com isso. Só com o fato de ser soropositivo. A cada encontro amoroso, por medo de ser rejeitado, hesita em contar a verdade. Depois, perde o namorado por algum outro motivo. Cria um conflito e o o namoro termina. Essa história triste não para de se repetir e faz pensar no masoquismo.

O medo da rejeição é pernicioso. Foi contra este medo que Alain Emmanuel Dreuilhe lutou até morrer da doença. Corpo a corpo, publicado em 1987, é uma obra prima. Ele declarou guerra ao vírus, chamou-o de invasor, comparando-o ao exército nazista. Opôs-se vigorosamente à descrença dos médicos na possibilidade de resistir e denunciou a estigmatização dos homossexuais. Mostrou que o inimigo não é tanto o vírus quanto as fantasias a ele associadas e o isolamento a que estas condenam.

No livro, Dreuilhe conta que, tendo se deprimido, foi procurar um psicanalista, e, no decorrer da análise, encontrou as suas  metáforas guerreiras. Passou a raciocinar como um estrategista, saindo da condição de vítima para a de combatente. Só escreveu sobre a sua dor para se defender, entoando uma ária marcial contra o vírus da Aids, considerando que este havia tomado o seu corpo como um invasor, como os alemães tomaram a França.

O vírus, segundo ele, afeta menos a imunidade do que a confiança. Isso continua a ser atual porque a culpa tanto ronda o aidético quanto o canceroso. Aids e câncer são palavras que desnorteiam, elas estigmatizam e fazem perder a razão. Quem pega Aids ou tem câncer precisa analisar cada um dos seus juízos para enfrentar a doença e se tornar um combatente. Como Dreuilhe, que não só escreveu Corpo a corpo, mas tudo fez para difundir a obra. Foi traduzido em várias línguas e publicado em 1989, no Brasil, onde o controle do sangue era precário e dez por cento dos que haviam recebido transfusão eram soropositivos.

Sabendo que eu havia escrito um artigo sobre ele, me enviou uma carta surpreendente, agradecendo e propondo um encontro em Nova York, onde morava. Eu teria ido se, pouco antes da data prevista, não tivesse recebido uma segunda carta, em que ele se despedia anunciando a morte próxima.

Teve a delicadeza de preparar os amigos e os que se associaram à sua causa. Deixou uma eterna saudade de gente como ele. Generosa consigo mesma e com os outros. Capaz de resistir à doença e ensinar a fazer o mesmo.