Um gol milagroso

Um gol milagroso

betty milan
Folha de S. Paulo, Opinião, 27/11/22

 

 

Escrevi sobre o futebol nos anos setenta. Imaginei que o texto estivesse datado até ver o segundo gol de Richarlison na Copa. O Brasil que interessa, o que respeita a lei, tem espírito de equipe e improvisa, ressurgiu na torsão vitoriosa do Charlie brasileiro. Traçou com o corpo um L no ar e a bola emplacou. Um gol milagroso que me fez esquecer o drama dos últimos anos e fez a palavra esperança ressoar. O verde-amarelo se tornou novamente  símbolo do talento e do Brasil.

O gol de Richarlison evoca a capoeira e obriga a considerar a importância da cultura negra. Também a ela nós devemos a cultura do brincar, que  Joãozinho Trinta exaltava, na trilha de Oswald de Andrade para quem o Carnaval é a religião nacional e a alegria é a prova dos nove. Será que depois do jogo alguém ainda duvida disso?

O Braaasiiil!, que parecia perdido, entrou de novo em cena mostrando que o estilo do nosso jogador não deixou de existir, embora de  1995 para cá o futebol tenha mudado muito. O jogo se acelerou e,  como me disse Platini em entrevista de dezembro de 2013, as regras foram alteradas. “Ninguém mais perde tempo para buscar a bola quando ela sai do campo… O goleiro não está mais autorizado a pegar com a mão a bola passada por um jogador do seu time. Deve reenviá-la, chutando. O estilo do futebol se globalizou. Depende menos do jogador do que do técnico e do time ao qual ele pertence.”

Apesar da globalização, o jogo do Brasil é revelador da nossa cultura. Desde pequenos, somos preparados para  improvisar. Por isso, o nosso futebol produz jogadores capazes de fazer o impossível acontecer, propiciar a experiência da surpresa da qual  nenhum ser humano prescinde.

Antes de pertencer a um time estrangeiro e ser formatado pelo técnico, o jogador brasileiro se forma na cultura do brincar como o samba bem diz: Com pandeiro ou sem pandeiro/ Ê, ê, ê, ê, eu brinco/Com dinheiro ou sem dinheiro/Ê, ê, ê, ê, ê eu brinco

Pode  o jogador se esquecer das origens, mas estas não se esquecem dele e se manifestam explícita ou sorrateiramente, levando o público ao delírio da alegria. De repente, o vento da capoeira  arrebata e ele se torna maior do que ele mesmo. O passado se incorpora e faz o presente acontecer.

Bem poderia o  Braaasiiil servir de modelo para transformar a realidade  deste país, como quer  Richarlison, que destina uma parte do seu salário a quem é pobre como ele foi na infância, quando morou com a tia Audiceia,  numa casa em ruínas, que a chuva alagava. Dormia amontoado com os primos e tios e vendia picolé para completar a renda.

Hoje, ele sustenta uma casa em Barretos para doentes de câncer que não tem onde residir,  criou na cidade natal um clube de futebol, financiou pesquisas para vacina contra covid-19 e usou a própria imagem para as pessoas se vacinarem.  Diz que espera incentivar os outros a  ajudar o próximo.

Richarlison merece respeito pelo seu discurso tão consequente quanto o seu jogo. Obrigada Charlie.

 

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Betty Milan é autora de O Papagaio e o Doutor e Baal, entre outros, membro da Academia Paulista de Letras