Sobre a obra
Betty Milan
A minha biografia pode ser resumida em quatro acontecimentos. A imigração dos meus avós do Líbano para o Brasil, no final do século XIX e começo do século XX. A minha saída do Brasil para a França, em 1974, a fim de fazer análise com Lacan. O nascimento do meu filho Mathias em 1982. O falecimento da minha mãe em 2021.
A obra e a vida
A minha obra literária foi inspirada pela minha biografia e eu nunca neguei isso. A separação entre obra e vida imposta pelas convenções literárias é decorrente do recalque e não há por que a perpetuar. Proust diz que a matéria da sua obra literária são as suas experiências passadas.
Seria interessante mostrar as etapas preparatórias da obra literaria como os pintores e os cineastas o fazem. Os exemplos são muitos. Para pintar Guernica, Picasso fez vários esboços e eles estão nos museus. O making off dos filmes estão no streaming. Por que não fazer o making off dos textos literários?
A imigração e a obra
A imigração me levou a escrever dois romances sobre a diáspora, O Papagaio e o Doutor e Baal. Através deles, eu percebi que a minha história pessoal está ligada à História. Passei a infância em São Paulo, onde eu nasci e onde moravam os meus avós maternos. Ia regularmente para Capivari, a cidade dos avós paternos e dos outros imigrantes que vieram junto. Moravam em duas ruas que formavam um L, como para lembrar do país natal, o Líbano. As memórias que eu tenho de Capivari são as melhores. Os ancestrais só brigavam por causa de algum desvio gastronômico, que podia contrariar a tradição. Uma fartura digna do paraíso a que eu me refiro no O Papagaio e o Doutor falando de Inhô, aliás inspirado num tio meu.
«Que na sua mesa não faltasse o quibe, a esfiha, a folha de uva, o leitão pururuca, o pernil assado, o frango a passarinho, a lasanha, o risoto. O Oriente e o Ocidente justapostos — como as cores de uma paleta —, pois ele de tudo gostava e mais ainda de comer, fartar-se nas refeições, deliciando-se entre elas com doces cristalizados, mamão, jaca, cidra, laranja e abacaxi, biscoitos amanteigados em forma de estrela ou meia-lua, balas e bombons servidos na bandeja, que passava obrigatoriamente para qualquer visita.»
O avô paterno era um grande contador de histórias e nós crianças nos regalávamos ouvindo ele contar. A mesa farta e as histórias em abundância. Na cidade de Capivari, onde Tarsila do Amaral nasceu, os familiares eram amados e eu só soube da xenofobia em São Paulo, na adolescência. Me refiro a esta experiência negativa tanto no Papagaio e o Doutor quanto em Baal. Sobretudo em Baal, que diz respeito ao palacete da rua dos Ingleses onde a minha avó materna morava e que só foi destruído por causa da ganância dos descendentes. Passei cinco anos escrevendo e reescrevendo cada um desses romances. Baal teve mais de vinte versões. Sou uma escritora sem formação literária. Aprendi fazendo, caminhando. Por isso eu frequentemente cito Antonio Machado: «Caminante, no hay camino, se hace camino al andar».
Comecei a andança já em Capivari, onde eu escrevia e montava pequenas peças dirigindo os primos e também atuando. Na vida adulta, escrevi sete peças de teatro e teria escrito muito mais se não fosse tão difícil ver a peça em cena. Uma delas, Paixão, foi montada por Nathalia Timberg e encenada no Brasil inteiro. Outra, O amante brasileiro, foi montada no Oficina. Adeus Doutor foi adaptada para o cinema nos Estados Unidos e montada no Jeffrey and Gural Theater. Adoro teatro, mas só entrei em cena uma vez, no Oficina. Fui muito amiga do Zé Celso, a quem eu fiz uma pequena homenagem no dia do seu aniversário de morte.
Neste ano, eu completei 80 anos. Resolvi comemorar homenageando três grandes amigos: Neide Archanjo, Carlito Maia e Zé Celso. A homenagem à Neide Archanjo eu fiz com o livro Amantes da palavra, editado com a nossa correspondência. O livro também tem a finalidade de fazer a obra poética da Neide ser revisitada. Carlito Maia eu homenageio com a reedição de O Clarão pela Record. Zé Celso, com um folheto, reunindo os textos que eu escrevi sobre ele. A pedido do Zé, eu fui a escriba de várias peças do Oficina.
A imigração e a análise com Lacan
Passei da história da imigração para o teatro por causa da infância em Capivari. Mas eu preciso dizer que, se não fosse a imigração, eu não teria ido para a França fazer análise com Lacan. Para os meus ancestrais imigrantes, a França era muito importante, eram cristãos maronitas, e o Líbano foi um protetorado francês. Minha avó materna, filha de um imigrante rico, passou mais de um ano na França, escolhendo os móveis para decorar o palacete da família. Sobre o fascínio pela França, eu escrevi no Papagaio e o Doutor me referindo a esta avó materna e também à minha mãe:
«Malena ( a avó) só na França estava em casa e, como só em casa estivesse na França, alegava o menor calorzinho para nunca sair do palacete. A mãe teria preferido o canto de um melro ao gorjeio do sabiá, a copa de um marronnier à de qualquer palmeira. Podia eu, Seriema, deixar de ir por elas a Paris? Ia realizando o sonho alheio, descendo sem saber aquela mesma escadaria que pretendia servir Versalhes em Açu (Brasil), já adorando Luís XIV.»
Conto isso no Lacan ainda, o testemunho da minha análise. Nele, eu focalizo a maneira como Lacan trabalhava, sustentando a transferência através do corte da sessão e não pela interpretação do significado do discurso do analisando. Assim que o essencial havia sido dito, ele considerava a sessão terminada. Foi por ter sido excluída da Sociedade Brasileira de Psicanálise que eu fui ter com Lacan em 1973, mas também por causa da ditadura, do machismo… A análise felizmente mudou a minha vida. Graças a ela eu pude aceitar as minhas origens e o meu sexo. Venci a autoxenofobia.
Lacan ainda foi publicado em 2021 no Brasil pela Companhia das Letras, traduzido depois para o francês – Pourquoi Lacan – e, em 2023, para o inglês. Saiu nos Estados Unidos pela Bloomsbury, Analysed by Lacan. O livro é bem-sucedido, porque a teoria do Lacan se difundiu nos Estados Unidos mas a sua prática é desconhecida por lá. O testemunho foi editado junto com a peça de teatro que inspirou o filme Adieu Lacan, do qual eu gosto muito. Além de ser uma adaptação excelente da peça, o filme é o primeiro de ficção no qual Lacan aparece.
Na verdade, Lacan ainda é o produto final de um trabalho que começou quando eu tinha 28 anos, ou seja, há cinco décadas. Começou com a análise e a tradução do seminário de Lacan, Os escritos técnicos de Freud, o primeiro seminário editado em língua portuguesa. Um trabalho que me ensinou muito. Tive que cunhar conceitos na nossa língua e isso implicava analisar o texto original de Freud e as diferentes traduções.
Os anos 70 na França, a fundação do CFTJ e o encontro com Joãozinho Trinta
Nos anos em que eu fazia a minha formação na França, eu devorava a teoria do Lacan e a cultura francesa. Lia os autores aos quais ele se referia e também os que Alain Mangin, com quem eu me casei, me indicava. Tanto Alain quanto seu irmão Bernard contribuíram muito para a minha formação. Além dos colegas psicanalistas, eu encontrava os amigos do grupo deles, intelectuais que se tornaram célebres, como a escritora Michèle Sarde e o geoestrategista Gérard Chaliand. Ninguém falava da vida pessoal. A conversa girava em torno de questões políticas ou literárias – e todos sonhavam com um mundo sem guerra e sem fronteiras.
Já na França, em 1975, fundei com Magno Machado Dias o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, a primeira grande instituição lacaniana do Brasil. Para ter uma ideia, em 1985, na comemoração dos dez anos do Colégio, nós reunimos 1.000 pessoas no Copacabana Palace. O encerramento foi com uma festa oferecida por Joãozinho Trinta, de quem eu fui interlocutora a partir de 1978, o ano em que eu voltei da França.
O encontro com Joãozinho foi marcante. Descobri a cultura do brincar e escrevi Os bastidores do Carnaval, dedicado ao carnavalesco. Descobri também que, além de ser o dia do esquecimento, o Carnaval rememora a nossa história. Através dele o Brasil se reinventa todo ano. Por sinal, todo ano eu lamento a cobertura televisiva do desfile e sobretudo os comentários. Os bastidores do Carnaval é o resultado da escuta dos carnavalescos e, graças a ele, os comentaristas hoje vão aos barracões para se informar sobre o desfile, as alegorias, as fantasias etc. Mas não se aprofundam em nada. Trata-se de um desperdício, porque o Carnaval é uma grande ópera de rua. O desperdício é a nossa especialidade.
O casamento, a maternidade e O que é amor
No ano de 1981, me casei com Alain Mangin que foi a São Paulo pedir a minha mão. O pedido aconteceu no Almanara, onde nós almoçávamos com mamãe, que há muito já era viúva. Alguns meses depois do casamento, eu engravidei e, em outubro de 1982, dei à luz Mathias. Durante a gravidez, escrevi O que é amor para a Editora Civilização Brasileira. O livro foi tão polêmico quanto bem-sucedido. Nele, eu fazia um contraponto entre a paixão do amor e a paixão do brincar, cujo melhor exemplo está no Macunaíma. Já então eu sabia que os meus ancestrais literários eram os modernistas. Um dos capítulos do livro foi adaptado para o teatro, deu origem à peça Paixão.
Do Brasil para a França em 1985 e a escrita do Papagaio e o Doutor
No Brasil, eu clinicava, ensinava no Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, escrevia artigos de crítica social para o jornal Folha de São Paulo, jornal com o qual eu sempre colaborei de diferentes maneiras. Mas, em 1985, Alain quis voltar para a França e, para que Mathias não crescesse longe do pai, eu mudei novamente de rumo. Isso custou caro. Depois de ter feito análise com Lacan e ter fundado uma Escola no Brasil, eu não queria me reintegrar no meio psicanalítico francês pelo qual eu não tinha simpatia. Só trabalhava como psicanalista no Brasil, para onde eu vinha clinicar duas vezes por ano. Me isolei para cuidar do meu filho e escrever o meu primeiro romance de fôlego, Papagaio e o Doutor. Trata-se de um romance inspirado no meu trabalho com Lacan. A heroína, Seriema, é uma brasileira descendente de imigrantes que foi a França se analisar com um renomado Doutor, de quem ela não consegue se separar. Rememorando a análise e o passado dos imigrantes, Seriema se liberta do Doutor e dos ancestrais para se tornar quem ela deseja ser, viver no país natal e cultivar a língua do ão, a língua em que ela sonha.
Em 1989, a pedido da Eucatex, que havia publicado a primeira versão de Os bastidores do Carnaval em 1987, eu escrevi O país da bola, focalizando o brincar no futebol brasileiro. Consegui entrevistar vários jogadores e, entre os brasileiros, Leônidas da Silva, que fez o famoso gol de bicicleta. O livro foi saudado pelo Jornal do Brasil com a primeira página do Caderno B. Depois, foi editado na França durante a Copa do Mundo de 1998 e entrou na seleção de livros indicados pelo Nouvel Observateur.
Tradução do Papagaio e o Doutor e A Paixão de Lia
De 1991 a 1994, trabalhei na tradução do Papagaio para o francês com Alain e, como a língua francesa é um verdadeiro espartilho, escrevi ao mesmo tempo A paixão de Lia, um romance em que erotismo e lirismo se confundem. Diz respeito a uma mulher que, para compensar a falta do amado, se deixa levar pela fantasia. Passa de uma a outra situação imaginária e se realiza através da liberdade de imaginar, mas permanece só, do começo ao fim da história. Lia é tão livre quanto eu sou ao escrever na língua natal, onde me sinto em casa. Queria que o texto fosse ouvido e por isso o adaptei para o teatro. A peça foi lida no auditório do jornal Folha de São Paulo por José Celso e Julia Gam.
As grandes entrevistas na França e A força da palavra
A fim de não ficar completamente isolada na França, comecei a entrevistar grandes intelectuais e escritores para Folha de São Paulo. Tive o privilegio de encontrar Octavio Paz, que falou sobre o amor; Michel Serres, que falou sobre a importância da cultura mestiça; Derrida, Françoise Sagan, Nathalie Sarraute e muitos outros. Foi um grande desafio que eu enfrentei procurando orientar as entrevistas sem nunca orientar as respostas. Todas elas estão no meu acervo digital, à disposição do público, no item Artigos. Basta clicar www.bettymilan.com.br. Foi uma experiência e tanto. As entrevistas eram publicadas no Caderno Ilustrada e depois foram reunidas, em 1996, pela Editora Record, num livro chamado A força da palavra.
Paris não acaba nunca e a tradução em francês
Não parei de visitar Paris desde que me radiquei na cidade. Uma doença grave na família me levou a escrever crônicas sobre Paris. A escrita, no meu caso, é um antídoto para a tristeza. As crônicas foram inicialmente publicadas no Jornal da Tarde e depois reunidas num livro, Paris não acaba nunca. O título teve sucesso de venda no Brasil e depois foi traduzido para o inglês e o francês. Me autorizei a fazer a versão francesa, passando novamente de uma língua para outra. Possível que esse ir e vir de uma para outra língua tenha a ver com a história da imigração. Nunca quis ser uma escritora de língua francesa, mas eu desejava que o livro existisse também na França. Recebi do Chirac, que então era o prefeito de Paris, um elogio. A minha versão foi traduzida para o chinês e publicada em Pequim. Além do Paris não acaba nunca, eu ousei traduzir A mãe eterna com a colaboração do meu companheiro, Jean Sarzana, que também é escritor. Me dei conta de que eu agora sou capaz de traduzir a minha ficção para o francês.
O Século e a colaboração na Folha
Em 1998, a Folha de São Paulo me pediu dez entrevistas sobre o século XX, cujos temas seriam a cidade, a guerra, a terra, o desterro, a vida, as mulheres, o sexo, a língua, a arte e a comunicação. Mais um grande desafio que eu aceitei por contar com a colaboração de Alain e Bernard. As entrevistas também foram reunidas pela Editora Record num livro, O século, que ganhou o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte em 1999. O livro é dedicado ao Otavio Frias Filho, cujo apoio foi fundamental na minha caminhada. Escrevi de tudo na Folha de São Paulo, artigos de crítica social, grandes entrevistas e fui colunista. O consultório sentimental também começou no jornal e depois passou para a Veja.com, onde foi mais bem-sucedido. As consultas publicadas na Folha foram reunidas pela Record num livro chamado Fale com ela e as da Veja num outro chamado Quem ama escuta. O consultório sentimental, publicado na França, recebeu o título De Vous à Moi.
O Clarão e o Projeto Amizade no Terceiro Milênio
Nunca fui de ficar só num único trabalho e, antes de começar as entrevistas para O Século, eu já estava escrevendo um novo romance, O Clarão. Por um lado, não suporto a monotonia e, por outro, quando se trata do romance, eu preciso de tempo para descobrir o que vai ser escrito e me certificar de que escrevi o que de fato desejava. O romance é, para mim, a via pela qual a realidade se ilumina. O romance e o teatro. A escrita ficcional leva a lugares onde não é possível chegar através da reflexão.
O Clarão é inspirado na vida de Carlito Maia, que foi um grande amigo meu. Carlito era um publicitário excepcional, grande frasista. O Lulalá é dele. De repente ele se tornou afásico, perdeu a palavra, o que ele tinha de mais precioso. Uma perda que me levou a escrever sobre a amizade e a morte. O Clarão foi publicado em 2001 pela Editora de Cultura, como parte de um movimento de educação para a paz que reuniu vários intelectuais e artistas. Se chamava Projeto Amizade no Terceiro Milênio (PATM). Além dos vários lançamentos, fiz uma exposição de frases que viajou para grandes capitais do país. O livro foi reeditado este ano pela Record, onde está quase tudo que eu escrevi.
Não parei de escrever desde que fui a Paris, passando de um gênero a outro e da literatura para o teatro. Preciso da escrita para pensar, entender o que acontece na realidade e me conectar comigo mesma. A questão do gênero não me preocupa. O que me interessa é encontrar a forma correta para o que eu quero expressar e eu sempre escrevo inúmeras versões do texto. Isso obviamente me cansa, mas eu não sei fazer de outra forma.
Antes de lançar O Clarão, fui convidada de honra do Salão do Livro de Paris de 1998. Nessa ocasião, conheci Jean Sarzana que se tornou o meu companheiro e me inspirou O amante brasileiro, um romance epistolar publicado em 2003. Foi o meu terceiro texto ficcional sobre o amor e está na Trilogia do amor.
A trilogia reúne O sexophuro, A paixão de Lia e O amante brasileiro. O sexophuro eu escrevi logo depois de terminar a análise com Lacan e foi o meu primeiro texto de ficção. Se origina no drama de um casamento impossível e focaliza uma mulher que procura uma saída para si fora do casamento. A paixão de Lia diz respeito a uma mulher que só consegue se realizar afetivamente através do imaginário. No romance, O amante brasileiro, a mulher encontra um verdadeiro parceiro. O texto é centrado em dois personagens, Clara e Sébastien, que se amam realmente e acima de tudo querem o acordo. A comunhão, que a personagem de O Sexophuro sequer imagina e Lia só alcança imaginariamente, é vivida de maneira plena na realidade por Clara e Sébastien, que são amantes e irmãos de alma.
Levei três décadas para trilhar o caminho que se abriu com O Sexophuro e terminou com O amante brasileiro. O caminho, na vida real, correspondeu à passagem da relação decepcionante com um «marido» brasileiro que não pôde suportar a minha independência para o meu encontro com um francês do norte, Alain, e depois com outro do sul que desejou ser batizado nas águas do Brasil. Também O amante brasileiro foi adaptado para o teatro e estreou em 2004 no Oficina. Cito o que Zé Celso disse a propósito da estréia: «… uma noite histórica do Teatro Oficina, em que os mistérios de sua longevidade de eterna juventude… se revelaram».
Para suportar a desaparição de Alain, que faleceu em 2004, comecei a escrever Consolação. A heroína do romance é Laura, uma brasileira, casada com um francês. Assiste à agonia e à morte do marido num hospital parisiense. Tenta inutilmente convencer o médico a abreviar o sofrimento e, depois do enterro, toma o avião para São Paulo, a sua cidade natal, com a qual mantém uma relação de amor e ódio, contraditória. Surpreendentemente, Laura não vai para a casa da família – porque não suporta a ideia de ouvir “meus pêsames” e de ser olhada com pena. Vai direto do aeroporto para o cemitério, onde fala com os vivos e com os mortos, cujas vozes ela ouve. Assim, Mario e Oswald de Andrade, os escritores que, pela sua independência e sua relação com a cultura brasileira, a marcaram. Por fim, fala com o pai, que a incita a sair da concha do luto e a escutar os outros, o “povo da rua” – os que nela vivem sem serem vistos nem ouvidos. Laura segue o conselho e erra pela cidade, falando com os moradores de rua. Descobre a São Paulo que ninguém conhece e nos revela o mundo dos seus moradores invisíveis. O périplo só se interrompe por Laura ouvir a voz do marido, que a convence a sair da rua. Alega, por um lado, que, sendo mãe, ela precisa se cuidar, e, por outro, que “perder não significa não ter” – e ela ainda o tem, desde que não se esqueça do amor.
O tema da morte, que já havia aparecido no Clarão, reapareceu em Consolação e eu me aprofundei nele em dois outros livros. A mãe eterna, publicado em 2017, antes do falecimento da minha mãe, e Heresia, publicado depois de sua morte. Nesses livros, eu insisto na ideia de que o prolongamento da vida pode ser malévolo e que morrer é um direito. Nós só seremos civilizados quando pudermos nos ajudar a morrer.
Baal e a viagem ao Líbano
Ainda quando mamãe estava viva, a Record publicou Baal., outra história da imigração libanesa no Brasil. O patriarca e personagem principal, Omar, narra um drama sempre atual: o da imigração. No final do século XIX, quando seu melhor amigo é capturado por uma milícia para servir no exército inimigo, Omar é forçado a largar seu país no Oriente Médio. Ao fugir da aldeia, coração partido, jura que voltará para buscar a família e a noiva. Embarca para os trópicos, atravessa o oceano e começa a vida na mascatagem, como os conterrâneos que emigraram para o Novo Mundo. Valendo-se da força física e da inteligência, vence as dificuldades, torna-se um próspero atacadista e constrói um palácio, Baal, «uma jóia do Oriente no Ocidente», para sua filha única, Aixa, e a família dela. Só que, depois da sua morte, os descendentes dilapidam a fortuna. O patriarca, que morreu sem poder descansar em paz por causa dos conflitos familiares, vê a guerra do país natal se repetir no país da imigração. Pervertidos pelo dinheiro e com medo do empobrecimento, os netos resolvem demolir Baal a fim de vender só o terreno e fazer com o palácio «o negócio mais rentável». Tiram a mãe já idosa do lugar onde ela sempre morou e a transferem com a fiel servidora e o cachorro para um cubículo. Indignado com o comportamento dos netos, Omar os culpa por não se darem conta da sua luta e do alto custo do berço de ouro que lhes proporcionou. Associa a crueldade deles à vergonha das origens. Diz que, além de xenófobos, são desmemoriados, «sucumbiram no fundo negro do esquecimento». Para se opor a isso, ele rememora a história. A rememoração o obriga a reconhecer os seus erros. Não se empenhou em transmitir o que aprendeu na travessia e, por preconceito em relação às mulheres, não formou a filha para ser sua sucessora. Se valeu dela para animar Baal, o seu pequeno império tropical, e não para que o palácio continuasse a existir depois da sua morte e se tornasse o que deveria ter sido, um memorial da imigração.
Graças a este romance, em 2019, eu fui convidada a participar da Diaspora Lebanese Energy e fui homenageada em Beirute com o Cedro do Líbano «pela minha contribuição para o país dos ancestrais» . Isso me deixou muito feliz. Nessa viagem, eu fui a diferentes sítios históricos e ao lugar de onde o meu avô paterno, o contador de histórias, partiu, Kfarakab, cidade onde nasceu Amin Maalouf. Da casa só restavam duas paredes em L e, no meio delas, havia um canteiro de flores. De lá eu trouxe uma pedra que está na minha estante.
Adieu Lacan
Em 2019, os direitos de adaptação cinematográfica da peça Adeus Doutor e do romance O Papagaio e o Doutor foram comprados pelo diretor de cinema americano Richard Ledes. O ator David Patrick Kelly fez o papel de Lacan e Ismenia Mendes o de Seriema. A produção e a filmagem foram realizadas nos Estados Unidos e concluídas em 2021. O filme está no streaming.
Ato contínuo, houve uma edição de O Papagaio e o Doutor na França, pela editora érès– Le Perroquet de Lacan. E eu espero que o romance seja editado nos Estados Unidos. Se eu não tivesse passado pela ficção, eu não teria chegado ao testemunho, no qual eu só me vali da minha história para iluminar a prática do Lacan. Ou seja, quando o meu grau de narcisismo se tornou muito baixo. Tanto para a tradução francesa quanto para a inglesa eu fiz questão de trabalhar com os tradutores. Assim como eu não parei de errar de um para outro país, eu errei de uma língua para outra e de um para outro gênero.
Resumidamente a história é essa.