Situação da psicanálise no Brasil

Situação da psicanálise no Brasil

Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
saiu como “1980. Situação da psicanálise no Brasil”, no Jornal da
Tarde
, São Paulo, 26/01/1980, e em traduções nos periódicos
Spirali (Itália) e La Quinzaine Littéraire (França)

1980. A situação da psicanálise no Brasil. Qual delas? A freudiana, a junguiana, a reichiana, a lacaniana, a kleiniana, a bioniana, a rosenfeldiana, a do ego ou a integral. Não há corrente que aqui não se encontre representada e, o que ainda é pior, por toda a parte, um ecletismo que sonega as oposições e dilui a crítica. Assim, por exemplo, um dos temas do VII Congresso Brasileiro de Psicanálise (1978), reunindo as sociedades psicanalíticas existentes no país filiadas à Associação Psicanalítica Internacional (IPA), era a contribuição de Lacan. O que, sendo uma abertura, não deixava de ser uma forma de ignorar o que no seu discurso se opõe radicalmente ao daquelas instituições, como se isso fosse irrelevante para a cura e a transmissão do saber psicanalítico. Talvez nenhum fato seja mais ilustrativo do que este para falar do que se passa num país onde, sem deixar de boicotar a difusão do discurso lacaniano, até as sociedades filiadas à IPA são lacanianas à sua maneira, à moda eclética, valorizando a teoria lacaniana do imaginário sem levar em conta a topologia que lhe dá sentido pela articulação do imaginário, do real e do simbólico.

Não há como abordar a psicanálise no Brasil a partir de posições teóricas dentro da mesma. A história da psicanálise no Brasil se define pelo que chamamos de institution building, desvio sul-americano equivalente pela sua insistência ao human engineering peculiar à América do Norte.

Quanto às posições institucionais, por um lado as sociedades filiadas à IPA de inspiração sobretudo kleiniana (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Brasília), a mais antiga delas tendo sido fundada em São Paulo, 1927; por outro lado, os grupos surgidos mais recentemente em oposição àquelas.

Pode-se dizer que a matriz da formação analítica, até 1975, foram essas sociedades de psicanálise. A política fechada das mesmas, interditando a todo e qualquer membro ou candidato participar das atividades de outros grupos ou associações, bem como praticando uma seleção de candidatos segundo critérios duvidosos e ainda impondo a exclusão dos não-médicos (à exceção da sociedade paulista), criaria, entretanto, um progressivo mal-estar, suscitando uma oposição estimulada pelas cisões que ocorriam na Argentina — os grupos Documento e Plataforma —, o discurso da antipsiquiatria e as ideias de Michel Foucault sobre as relações entre saber e poder.

Esse mal-estar resultaria em grupos de oposição, nos quais a formação se queria mais aberta e acessível. Abrindo-se entretanto para as influências mais diversas — Foucault, Deleuze, Guattari, Mannoni, Laing etc. Neles se praticaria um ecletismo que tornaria duvidoso seu projeto de formar psicanalistas.

Vale citar o caso do Ibrapsi (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições), que se firmou num congresso realizado em 1978, no Rio de Janeiro, através do discurso de convidados como Szasz, Basaglia, Castel, Guattari, cujo denominador comum era uma crítica dogmática não só à prática, mas ao discurso psicanalítico. Em nome de uma oposição ao dogmatismo e ao elitismo das sociedades filiadas à IPA, denunciando a seleção de candidatos segundo critérios econômicos, propondo-se a estender a cura psicanalítica às massas, o Ibrapsi então se promovia num congresso em que o discurso psicanalítico só figurava através de discursos contrários a ele, só existia como objeto de uma crítica política. Recusando o único discurso que poderia justificar os seus propósitos, o Ibrapsi se definia por um ecletismo obviamente oportunista. Szasz, Basaglia, Castel, Guattari e até mesmo a presença de Shere Hite, cujo Relatório sobre a sexualidade feminina (1976) havia sido censurado no Brasil, não era então o que de mais eficaz se poderia oferecer no início da abertura política do país?

Na mesma linha do Ibrapsi, e sob a égide da interdisciplinaridade, em São Paulo, o Nepp, Núcleo de Estudos de Psicologia e Psiquiatria, propõe-se a formar psicanalistas de alto nível. Neste contexto, não é de estranhar que tenha surgido uma Sociedade de Psicanálise Integral, preconizando uma síntese entre os pontos de vista psicológico, religioso e o das ciências naturais. O mentor espiritual do grupo é o filósofo alemão Arnold Keyserling, presidente da Associação Europeia de Psicologia Humanística, que não cessou de vender a utopia da felicidade nas suas várias entrevistas para o jornal e a televisão brasileiras.

Esquecido de que a cura psicanalítica é função exclusiva da palavra, o discurso destes grupos de oposição às sociedades filiadas à IPA é tão mistificador quanto o destas. Daí a proliferação neles do messias e o recurso invariavelmente utilizado para sua consolidação aos grandes da Psi internacional, aos convidados especiais.
Criticar a prática e o discurso que vigoram nas instituições locais é agora uma urgência, e o papel desempenhado pelos grupos de orientação lacaniana poderá ser decisivo.

Para isso, é preciso criar em nossa língua um espaço para o discurso de Lacan e há que traduzir, atividade de que hoje se ocupa o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, já tendo traduzido e publicado o Seminário, Livro 1, e o Seminário, Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, tradução de M. D. Magno. Em suma, a psicanálise brasileira está por se fazer e exige de nós, para começar, a crítica do que até hoje foi a psicanálise no Brasil.