Elisabeth Roudinesco sobre nova biografia de Sigmund Freud
betty milan
Betty Milan (1): Por que você escreveu uma biografia de Freud?
Elisabeth Roudinesco (2): Quando a gente escreve livros, não decide antes de escrever. A biografia se impôs, eu havia feito tudo na psicanálise. Escrevi a história da psicanálise na França, a biografia de Lacan… Depois, com o Dicionário da Psicanálise, abordei quase todos os países. Faz mais de vinte anos que eu ensino História da Psicanálise. Havia uma espécie de lógica que se impunha. Não existia mais biografia alguma de Freud desde Peter Gay, a última biografia séria, datada de 1988. Mas era preciso renovar.
Arquivos novos foram abertos agora em Washington, e eu achava necessária uma abordagem de Freud diferente da que os historiadores americanos fizeram. Queria uma abordagem austro-húngara, Mitteleuropa, um Freud goetheano, um Freud dividido entre o obscuro e a luz. Queria invalidar vários rumores e levar em conta a correspondência, que agora está publicada. Evidentemente, a recrudescência dos rumores, a recrudescência da ignorância, mesmo no meio psicanalítico, me levou a pensar que mais ninguém sabia quem foi Freud. Nós lemos os textos de Freud. Na França, eles são ensinados, mas como um corpus solidificado. Ademais, eu queria conhecer Freud através da sua vida, da sua correspondência – dez mil cartas disponíveis…
Fui rapidamente a Washington, à Biblioteca do Congresso. Conhecia muita coisa – quase tudo havia sido publicado, mesmo em francês. Penso que era necessário também implantar esta nova maneira de ver Freud nos Estados Unidos. Para mim, a grande alegria foi quando fiquei sabendo que ia ser traduzida pela Harvard University Press. Porque isso significa que o debate historiográfico sobre Freud vai ser relançado no mundo anglófono, que domina os estudos de história. Como você deve ter visto no meu livro, os trabalhos que eu cito são majoritariamente americanos.
BM: Você ficou muito tempo em Washington?
ER: Não. Uma semana. Atenção: ninguém deve se perder nos arquivos. Quando a gente vai a Washington para consultar os arquivos de Freud, precisa saber o que procurar. Se não, fica meses lá. Portanto, eu sabia pertinentemente o que queria: os casos desconhecidos de Freud, detalhes de pequenos testemunhos – porque os outros a gente tem. Não consultei as cartas que já estavam publicadas. Seria inutil. Mas, em contraposição, queria descobrir todos os detalhes sobre a partida de Freud [para o exílio em Londres], os testemunhos dos seus vizinhos em Viena, a vida cotidiana de Freud. Tudo isso e o caso desconhecido, que tinha sido explorado por antifreudianos.
Os antifreudianos, que dominam a historiografia americana, contribuíram muito. Você sabe que, no campo da história, a gente progride quando há conflito. A história dos campos de extermínio progrediu graças também às pessoas que negavam sua existência. Trata-se de um debate permanente. Nós estamos numa época que é de rejeição a Freud, os rumores que dominam a cena internacional, sobre sua sexualidade, sua vida dita escandalosa… Queria avaliar o que é verdade e o que não é. Freud não disse isto, e sim aquilo. Por exemplo, muitos psicanalistas pensam que, ao chegar nos Estados Unidos, Freud afirmou ignorar que ele estava levando a peste. Ora, ele nunca disse isso. Quando foi embora de Viena, não disse que recomendava a Gestapo para todos. Havia diferentes tipos de rumor que era preciso desmentir. Me interessava mostrar um Freud da Mitteleuropa, profundamente imbuído da cultura alemã.
ER: Freud se achava o herdeiro de Goethe. Você diz isso no seu livro.
ER: Sim
BM: Qual é o papel da escrita na obra de Freud e na difusão dessa obra?
ER: Freud era um escritor, escrevia magnificamente, mas nós esquecemos isso por causa das más traduções. Por outro lado, atribuíram a ele uma conceptualidade que até existe, mas esqueceram que, ao contrário de Lacan, cuja escrita é complexa, Freud escrevia de maneira muito simples.
Quis mostrar que, além de ser um pensador, ele foi um autor… escrevia todos os dias , o tempo inteiro, cartas extraordinárias. Em Freud, não há somente a obra teórica, existe a obra literária, a obra política, o organizador do movimento, a história dos casos, o correspondente – todo dia ele escrevia uma carta. São cartas que nos informam sobre sua vida cotidiana, o que ele comia, os aniversários e os grandes julgamentos. Há todos os tipos de correspondência, a intelectual com os discípulos; a íntima, de família, que é muito conhecida e apaixonante. Freud em família… os gostos de Freud, sua maneira de viver, seu apego à família.
Para alguém como eu, foi formidável trabalhar com Freud, porque eu saía de uma história tumultuada com a França, com Lacan, que é o personagem mais fascinante para um biógrafo. Lacan é como Marguerite Duras, é como um moderno, é tão difícil, conflitivo, doloroso. Freud é um homem simples. Não há um segredo terrível de família, não há uma vida escondida, nada disso existe. Freud é um pensador clássico, que funda um movimento, que tem vários defeitos – como, por exemplo, a ideia de que a psicanálise tem resposta para tudo. Construiu um verdadeiro cenáculo com os discípulos. Um homem apaixonante pelo seu classicismo… com os sofrimentos, as dores, a doença e duas guerras. A Segunda Guerra Mundial ele não viveu, mas viu avançar o nazismo, que ia destruir o que ele fez.
BM: Você o apresenta no seu livro como um ser paradoxal, um ser da luz e da sombra. Há um capítulo que se chama “Luzes sombrias”. Queria saber se a originalidade da obra de Freud está ligada a este caráter paradoxal.
ER: Sim, isso é conhecido. No livro, falo de todas as luzes, as alemãs, as francesas e depois as luzes sombrias. São pensadores progressistas que consideram, na trilha de Diderot e mesmo de Sade, que o ser humano não é bom por natureza, mas cabe à civilização fazê-lo progredir. Não pensam que tudo já está determinado, como muitos pensadores reacionários, para os quais as massas são horríveis, o homem é horrível e é preciso reprimir os maus instintos. Freud considera que é preciso sublimá-los e que a lei e a civilização têm um papel importante na maneira de controlar as pulsões.
Trata-se, portanto, de um pensamento muito forte. Mas é o que nós chamamos de luzes sombrias. Quem escreveu muito sobre isso foi Adorno, que relacionou Freud às luzes sombrias. Me aprofundei nisso e relacionei também Freud a Thomas Mann e a Stephan Zweig. Ou seja, ao grande escritor alemão que o reconheceu e ao desespero vienense de que eu gosto muito em O mundo de ontem, de Stephan Zweig. Freud é também um homem da belle époque. Portanto, todas as utopias são possíves. Acredita-se que a felicidade vai ser novamente possível na terra. Até 1914, há um primeiro Freud muito entusiasta. Quando vai aos EUA, ele considera que sua doutrina pode salvar existências, que é preciso liberar a sexualdade… tudo isso existe.
Essa é uma época de que eu gosto muito. Porém, Freud concebeu a psicanálise para personagens que a gente encontra nos romances de Proust. Uma época em que os grandes burgueses não se preocupavam com o povo, haviam abandonado a política e se questionavam muito mais sobre seus problemas do que sobre seu futuro. As pessoas se interrogam sobre si mesmas, sobre seu passado…
Freud é um homem incrível no que diz respeito à sua concepção da história. Para ele, cada etapa arqueológica da humanidade está inscrita em nós. Isso é fascinante. Freud nem é colonialista, pois não considera que existam os maus selvagens, nem anticolonialista. Considera que cada sujeito é uma humanidade, comporta a selvageria e a grandeza. Isso está maravilhosamente expresso em Totem e tabu. Freud é, sobretudo, um homem que se vale dos velhos mitos para modernizá-los, ele recorre aos trágicos. Pertence à belle époque. Isso não deve ser esquecido. A belle époque não quer saber das misérias do povo e, portanto, vai soçobrar nas guerras nacionalistas. Daí surge um segundo Freud.
BM: Gostaria de ouvir mais sobre o começo e em particular sobre o capítulo do seu livro que se chama “A invenção da psicanálise”, que aborda a relação de Freud com seus próprios sonhos. Trata-se de um capítulo impressionante, e eu gostaria que você falasse da maneira como Freud procedeu para escrever A interpretação dos sonhos.
ER: Trata-se de um livro inacreditável. Tratados de neurologia sobre os sonhos existem desde a Antiguidade. Freud não inventou que os sonhos têm uma significação. Freud não inventou nada de particular, ele se inscreve numa grande continuidade. Mas, de repente, ele interpreta de outra forma. A novidade é esta. Sobre a sexualidade, é a mesma coisa. Havia dezenas de livros sobre a sexualidade infantil e, de repente, ele esclarece de outra maneira. Sobre os sonhos, no fundo, ele constrói uma teoria sobre os seus próprios sonhos. Impressionante. Não é preditivo, não é como o adivinho grego Artemidoro, não é como todos os tratados de neurologia. É, de saída, uma interpretação. Freud se pergunta o que nós desejamos inconscientemente.
BM: Gostaria que falasse sobre o modo como ele fez o livro. Levantava-se no meio da noite…
ER: Levanta-se no meio da noite, anotava o sonho, questionava-se sobre si mesmo. Chamaram isso de autoanálise. É uma formidável ego-história. Freud se debruça sobre si mesmo, sobre sua sexualidade, sobre suas lembranças de infância… Há uma série de anotações sobre a maneira de viver na Áustria, sobre os colegas, sobre os próximos. Trata-se, portanto, de uma ego-história. Freud teoriza, mas existe também uma narrativa.
BM: No seu texto, você diz que é um poema em versos livres.
ER: Sim, um poema em versos livres inspirado em Dante e em Virgílio. Ele era um grande leitor de Dante e de Virgílio – de Virgílio, sobretudo. E Freud se debruça sobre a própria história e sobre a história da humanidade. Foi nessa época que ele teve uma idéia genial – que depois se tornou um dogma, mas era genial – a de que nós todos somos heróis de tragédia. Essa idéia sempre me intrigou. Tenho horror do Complexo de Édipo, do que fizeram com ele na psicologia da família. Fui aluna de Deleuze e aderi à crítica que Deleuze fez. Mas, em 1897, a ideia de que somos todos heróis de tragédia – Édipo e Hamlet, os dois pivôs da tragédia ocidental –, é genial. Édipo, o inconsciente que faz e fala por nós; Hamlet, a consciência culpada. Freud diz: “– No fundo, nós somos todos Édipo e Hamlet, e todos os doentes que eu trato, os neuróticos, são Édipo e Hamlet”. Ora, na época, eles eram tratados como doentes. Não falavam com eles, davam remédios, mandavam para os sanatórios. De repente, Freud disse que eles eram heróis de tragédia. Para um neurótico comum, era ótimo se tornar Édipo, porque ele se inseria numa história.
BM: Se humanizava…
ER: Se humanizava. Naquela época, isso era evidente na história de Sergei Pankejeff, o Homem dos Lobos, um grande burguês feio que ia de clínica em clínica, de sanatório em sanatório com problemas terríveis e, de repente, se torna Édipo. De repente, a história dele adquire sentido através das interpretações, e isso o humaniza. Freud dá uma dignidade a ele.
Há um testemunho [do escritor] Elias Canetti de que eu gosto muito. Canetti chega em Viena, nos anos 1920, e diz: “– Incrível, todo mundo aqui se toma por Édipo”. Claro, era melhor se tomar por Édipo do que ser um doente e ser internado nos sanatórios e se aborrecer. Freud apaga progressivamente a clivagem entre os neuróticos e o terapeuta. Considera que todos nós estamos às voltas com o mesmo problema. Por isso, ele tem discípulos loucos, como Otto Gross. A fronteira entre a razão e a loucura é apagada. Depois, Freud a restabelece. Mas a idéia de uma continuidade existe, Freud não é cartesiano. Não existe a razão de um lado e a loucura do outro, existe um contínuo.
Isso é importante, e eu quis abordar a história dos casos, ou seja, das pessoas tratadas por Freud, da mesma maneira que a história dos discípulos. Meu método historiográfico é esse. Acho que não devemos mais abordar a história dos casos como uma ficção – é preciso comparar o que Freud fez dos casos, através da escrita, com a vida real das pessoas. Ou seja, é preciso fazer os anônimos, que são os “casos de Freud”, entrar na história, tratá-los como personagens da história. Sei que, para os psicanalistas, isso é muito difícil, porque os casos de Freud são “os casos”. Mas não, nós, hoje, conhecemos a grande diferença entre a escrita dos casos e a história pessoal desses pacientes. Interessa mostrar os fracassos, analisar a noção de fracasso… Sim, porque Freud se ocupa de analisandos que nós, hoje, consideraríamos crônicos e incuráveis. Freud diz que são neuróticos, mas, na verdade, são muito mais do que neuróticos. São patologias pesadas. Freud lhes dá uma existência, mas não tenho certeza de que ele chegue a curar no sentido da medicina.
BM: Mas a questão não era essa…
ER: Isso vai ser descoberto progressivamente. Freud quer curar. O maior psicanalista, no sentido de querer curar, é Sandor Ferenczi – ele queria curar. Freud se dá conta, a partir de 1914, de Introdução ao narcisismo, de que certas pessoas não querem se curar. Podem ter analisado seus problemas, mas continuam indo mal. Freud fala então das patologias do narcisismo, do masoquismo e introduz a noção de pulsão de morte. Importante entender essa clínica. Não se pode dizer que Freud tenha sido um mau clínico. Não se pode dizer que ele tenha sido um clínico genial. Fez o possível. Queria muito ajudar.
BM: Nós falamos de Freud como clínico. Gostaria de ouvi-la falar da relação de Freud com as mulheres, porque é um ponto muito polêmico. Dizem que ele era misógino…
ER: Acho que tudo o que se diz é anacronismo ou inexatidão. Trabalhei muito os textos de Jacques Le Goff, porque ele fez o modelo da biografia. Sua história do rei de França [Saint Louis, 1996] é um modelo historiográfico. É necessário se livrar dos anacronismos. Devemos colocar a seguinte questão: na sua época, Freud era ou não era misógino? A resposta é “não”.
BM: Seria possível explicar?
ER: Freud tinha feito uma escolha na sua vida. Amava, à maneira antiga, uma mulher da sua época, que não era uma idiota destinada a ficar em casa educando as crianças. Mas, na sua concepção da vida familiar, a mulher ficava em casa para educar as crianças, desde que ela gostasse disso. O desejo, obviamente, é capital. Freud se apaixonou por uma mulher que tinha o mesmo desejo que ele. Portanto, de saída, Marta é uma mulher que tinha vontade de ter uma família. E Freud não era misógino na divisão das tarefas. Por outro lado, na sua vida, ele se liga a mulheres diferentes de Marta. A começar pela sua cunhada, Minna Barnays.
Freud é um homem que precisava de mulheres a sua volta. Foi adorado pela sua mãe, viveu com as irmãs. Precisava da opinião das mulheres, da companhia das mulheres. Sua cunhada é a parte intelectual dele. Freud acaso era misógino na sua educação? Não. Ele era contra os casamentos arrumados, que viveu na própria família. Freud fez um casamento de amor e considerava que suas filhas deviam escolher os maridos que quisessem. Claro que ele queria netinhos e queria que as filhas fossem felizes no casamento. Mas, quando Anna Freud decidiu ter um destino contrário e mostrou que queria ser sua discípula, ele acabou aceitando.
Anna era homossexual. Se ela praticou ou não sua homossexualidade, ninguém sabe. Seja como for, ela viveu com uma mulher, Dorothy Burlingham, a vida inteira. Freud aceita isso a partir dos anos 1920. Ele se dá conta de que sua filha não quer saber de homem, mas tem o desejo de educar crianças. Isso acaba acontecendo, porque ela vai educar as crianças da sua companheira, Dorothy. A psicanálise é endogâmica e familialista. Entre as outras mulheres próximas de Freud, há Sabina Spielrein. Foi Jung que a tirou da sua psicose e fez dela uma discípula. Já no começo, há muitas discípulas mulheres no movimento analítico. Que tenha existido uma misoginia no movimento, é evidente. Mas é preciso comparar. Se nós compararmos com as minutas da reunião da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras (1), vemos que há misóginos… Freud compara. Há misóginos nessas minutas, misóginos, que dizem para as mulheres ficarem em casa. Freud diz que não é porque os psicanalistas não são misóginos que os outros depois deixarão de ser.
Freud se exprime muito na sua corrrespondência. Diz: “Vivo como um burguês do século passado, tenho desejos de burguês, não gostaria que meus filhos se divorciassem, mas sou favorável ao que vai acontecer”. Ele se torna favorável ao aborto depois da morte da sua filha, Sophie Halberstadt; ele é favorável à contracepção; ele a pratica à sua maneira, pela abstinência. Se ele fosse um horrivel misógino, continuaria a ter relações com sua mulher, que não tinha vontade, pois não queria mais ter filhos. No entanto, ele se absteve.
Freud é incontestavelmente livre no que diz respeito aos costumes. Isso é claro na análise de Hilda Doolittle [“H.D.”] poeta americana bissexual. Freud é muito tolerante. A rigidez dele está no dogmatismo. A partir do momento em que ele instalou sua doutrina, quis que ela fosse aplicada. Não gostava dos dissidentes, dos heréticos. A partir de 1920, ele se torna muito duro, e isso eu digo no livro. Agora, com as mulheres, ele não foi duro. Necessário estar atento para evitar anacronismos.
BM: Mas o quê, na obra de Freud, fez pensar em misoginia?
ER: Sua teoria da sexualidade feminina. Disseram que ela era misógina. Anacronismo. Freud tem muitas teorias falsas. Interessantíssimas, porque fazem debater. Considera que a mulher tem uma reivindicação fálica e que o clitóris da mulher é o orgão mais erétil. Que toda mulher tem um pequeno pênis e tem que renunciar à posição fálica. Trata-se de uma teoria completamente falsa. Mas o que ela tem de interessante é o fato de ser monista. Para ele, cada ser humano quer dominar o outro. Ora, o pressuposto da teoria de Freud sobre a sexualidade feminina é que não existe natureza feminina . Para Freud, existe, por um lado, a anatomia, que é incontornável, e, por outro lado, a construção que nós fazemos.
Os kleinianos, as psicanalistas mulheres se opõem a esta teoria, dizendo que existem dois sexos e que o clitóris não é um pequeno pênis. Mas Freud não se enganou sobre tudo. Tinha razão no que diz respeito à reivindicação masculina da mulher e feminina do homem. Disso ele tratou. Agora, Freud foi menos compreensivo no que diz respeito à revolta das meninas contra os pais, do que à revolta dos filhos contra os pais. Freud entendeu mal a revolta das meninas, e isso se vê claramente no Caso Dora – o de Ida Bauer. O modelo de Freud é paternocentrista, os homens e os filhos. Mas ele sempre disse: “Veremos o que vai acontecer”.
No debate com Melanie Klein, toda a doutrina de Freud é posta em questão. Freud aceita, mas não foi muito fácil para ele, porque sua filha, Anna Freud, entrou no movimento analítico e se opôs às teses de Melanie Klein. Freud deixa o debate acontecer. Tem uma concepção da ciência segundo a qual é a experiência que decide. Penso que é a mesma coisa com a homossexualidade. Freud não podia imaginar que os homossexuais saíssem do registro da perversão. Freud era pela despenalização, o que foi capital na época.
BM: Você inclusive tomou posição nesse sentido.
ER: Claro. Agora, como se pode pensar que Freud imaginaria o casamento de homossexuais e a educação de crianças por eles? A única coisa que podemos dizer é que, quando a filha dele quis viver com uma mulher e educar crianças, ele não se opôs. Disse que seria uma família a mais. Há feministas um pouco excitadas que consideram que Anna Freud era uma feminista queer que antecipava o casamento homossexual. Trata-se de uma inverdade. Anna Freud foi homófoba. Apesar de ser homossexual, considerava que os homossexuais não deviam ser analistas. Que era preciso corrigir isso. Anna Freud era depressiva, não aceitava a própria homossexualidade.
BM: Anna Freud era paradoxal…
ER: Sim, e é provável que a homossexualidade dela tenha se mantido escondida na relação com a companheira, que a relação fosse sobretudo amistosa, e não sexual. Nunca saberemos. Anna Freud era uma mulher do seu tempo. Freud era mais avançado do que sua filha. Foi pela despenalização e era favorável à prática da psicanálise pelos homossexuais.
BM: Gostaria que abordássemos a relação de Freud com a política.
ER: O grande problema está aí.
BM: Você escreveu que a neutralidade política de Freud foi desastrosa. Seria possível desenvolver esse ponto?
ER: A parte mais crítica é essa. Freud era um conservador esclarecido. O modelo político mais realizado era a monarquia inglesa, que corresponde à doutrina dele. O assassinato do rei, seguido da reconciliação com a realeza e da posse de um novo rei, é a monarquia inglesa. Freud não gostava do modelo republicano. Ele era democrata, mas não um republicano no sentido francês. Ele considerou, assim como todo o movimento analítico, a partir do momento em que este se consolidou, ou seja, nos anos 1920, que a psicanálise deveria ficar neutra em relação a todos os regimes políticos. Foi o que ele chamou de “ausência de Weltanschauung“, ausência de representação do mundo.
Ora, ele tem uma representação do mundo. Não há como ser neutro e ter uma teoria política tão forte quanto a que ele desenvolve na sua obra – como a da morte, do assassinato necessário na origem das sociedades e a da reconciliação com a figura do pai. A ideia de que a psicanálise deve poder se exercer em qualquer regime foi calamitosa. Porque, a partir de certo momento, os psicanalistas enfrentam a ascensão do fascismo e dos países comunistas, onde, a partir de 1930, a psicanálise é interditada.
Freud é muito anticomunista. No seu movimento, ele vai combater, com Ernest Jones, a esquerda, ele é absolutamente contrário ao freudomarxismo, contrário à ideia de ligar a revolução social com a revolução psíquica. Verdade que é difícil de aceitar Wilhelm Reich, que é a encarnação do freudomarxista e é biólogo. Mas Freud não condena apenas Reich; ele não gosta dos socialdemocratas de esquerda do seu movimento. Depois, confrontado à ascensão do nazismo, ele vai apoiar a política de Jones até 1938. Freud conhece perfeitamente os horrores do nazismo, mas não se dá conta do que vai acontecer. Jones colabora com os nazistas em Berlim, a partir de 1935, para manter uma Sociedade de Psicanálise arianizada e, ao mesmo tempo, salvar os judeus. Jones tem uma política muito conservadora, e Freud a sustenta. Em nome de quê? Em nome da não intervenção da psicanálise nos problemas políticos. Só que estes intervêm na psicanálise. Como manter uma Sociedade de Psicanálise em Berlim quando a psicanálise é tratada de “ciência judia”?
BM: O que teria sido necessário fazer?
ER: Teria sido necessário ir embora. Nesse ponto, Reich tinha razão. Era preciso liquidar a Sociedade Psicanalítica de Berlim… Foi necessário esperar os anos 1980 para conhecer este período de pretensa salvação. É interessante, porque, quando Jones quis impor sua política em Viena – de colaboração com o regime nazista – , os psicanalistas não aceitaram. Freud não tem mais nenhum apoio. Muda de ideia e diz: “Vamos embora, vamos para o exílio”. Mas isso porque os não judeus da Sociedade Psicanalítica de Viena não aceitam a política de Jones. Há um enorme conflito. O fato é que essa ideia da neutralidade da psicanálise é uma catástrofe. Porque nós a reencontramos hoje. Em nome dessa mesma ideia que os psicanalistas no mundo inteiro, 70 por cento dos psicanalistas…
BM: Na América Latina não é assim…
ER: Não é, mas é em nome dessa ideia do não engajamento que os psicanalistas desconhecem completamente a sua história. “A História não tem interesse, porque a Psicanálise se basta a si mesma. Não há necessidade de conhecer a vida de Freud… “. Isso, aliás, se repetiu no lacanismo de maneira horrível e também entre os kleinianos. Por causa da ideia de que a psicanálise é suficiente para compreender o mundo. O resultado disso foi o desconhecimento, a incompreensão e uma atitude reacionária sempre que há uma mudança na sociedade – isto é, quando a mudança não toca diretamente os psicanalístas. Na verdade, são anarquistas de direita. “Fico neutro no que diz respeito a todo engajamento social. ” Mas, quando se trata da reorganização da família, isso toca os psicanalistas diretamente. Não é por acaso que eles se mostraram conservadores e reacionários a partir do debate sobre a questão homossexual dos anos 1980. Mantiveram a imagem do “homossexual perverso”, à maneira de Proust ou de Oscar Wilde, numa época em que os homossexuais entravam na ordem familiar e queriam ser tratados como neuróticos comuns e constituir família.
Como é possível que os psicanalistas não tenham entendido nada? Estão começando a entender, estão se mexendo, mas isso porque a sociedade civil não quer mais saber deles. E por uma série de razões. Primeiro, porque eles se enganaram sobre essas questões sociais e, como isso coincidiu com a grande vaga de antifreudismo, os psicanalistas ficaram numa situação impossivel. Ao negar a importância da história, eles fizeram pouco dos antifreudianos, que diziam um certo número de verdades; não quiseram enfrentar o problema da transformação da família e, como por acaso, houve a grande onda do tudo químico, ou seja, da redução das neuroses e das psicoses a fatores orgânicos, que os deixou numa situação muito difícil. Só lutaram contra o cientificismo químico.
BM: Você se posicionou em relação a várias questões de sociedade, sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a possilidade dos homossexuais de educar crianças. Seria possível falar sobre isso?
ER: As duas coisas andam juntas. Não devemos nos enganar. Faço parte de uma geração absolutamente favorável à emancipação dos homossexuais, à despenalização. Nos anos 1980, eu não podia imaginar que os homossexuais pudessem se tornar pequenos burgueses e constituir família. Quando a gente foi favoravel à despenalização desta sexualidade, dita perversa, e que a gente se dá conta de que uma nova geração deseja constituir família, o que é que a gente faz ? A gente tenta entender por quê.
Sendo eu a filha da minha mãe, que se ocupava de crianças e de adolescentes, face a uma nova situação, eu sempre me perguntei qual o seu significado. Depois do cataclisma da Aids, o desejo de vida dos homossexuais passava pelo desejo de se “normalizar”. Era um desejo de se normalizar no contexto da ordem familiar. Em que isso é chocante? Pode parecer estranho para a minha geração, que lutou pela emancipação de todas as sexualidades: “Você tem o direito de fazer o que quiser”. E nós, agora, vemos outra revolução – eles querem se normalizar. Não tínhamos argumento para nos opor.
A partir dos anos 1980, eu me coloquei a questão e era evidente que, se nós fizéssemos o Pacs [pacto de solidariedade civil, ou de união estável] para os homossexuais, dez anos mais tarde, nós faríamos o casamento deles. Quando se é historiador, a gente vai até o fim. Inútil se opor a alguma coisa que vai acontecer inevitavelmente. Quando algo é inevitável, melhor militar para que ela se faça bem. Noutros termos, era evidente que os homossexuais iam se casar e, portanto, era necessário pensar na questão da filiação. Se os homossexuais podem se casar, é para ter filhos. Não podem tê-los por vias naturais. O melhor sistema seria que as mulheres homossexuais estabelecessem uma coparentalidade com homens homossexuais. Não seria mau. E o progresso da ciência sendo o que é, o desejo de ter filho tendo se tornado tão importante na nossa sociedade, é evidente que rumamos para regulamentar todas as formas novas de procriação – inclusive para os heterossexuais.
A família dita “natural” vai sempre existir, ela é majoritária: 80 por cento. Haverá 10 por cento de homossexuais. Sempre foi assim em todos os tempos. Necessário legalizar. Assim que a gente introduz a lei, organiza melhor uma situação. Por isso, sou favorável à regulamentação da gestação para o próximo, de maneira a evitar o que se passa hoje. Como é clandestino, a gente compra crianças, aluga ventres.
BM: Quando penso que o aborto não é legalizado no Brasil…
ER: Necessário regulamentar, mas sabendo ao mesmo tempo que a regulamentação não evitará as extravagâncias, a loucura. Ora, os que se opõem a tudo isso invocam os casos particulares, como o caso de uma irmã que se faz inseminar com o esperma do seu irmão, ou o caso da fiiação a três, ou da inseminação com o esperma do pai… Mas, se a gente regulamenta, pode interditar, evitar as selvagerias.
Vivemos numa época muito catastrofista; temos medo de tudo. Os opositores falam do fim da família. Ora, não haverá nunca um fim da família, que é uma categoria antropológica. Anunciaram o fim da família com o divórcio, com o aborto… estão sempre anunciando um fim que nunca acontece. Nada acaba nunca. Isso, na história, é fundamental – chama-se evolução. Portanto, há coisas que acabam e outras que começam. Os psiquiatras biólogos do fim do século XX diziam que a química ia erradicar o suicídio. Isso me pareceu aberrante. Como se o suicídio fosse uma doença que se possa erradicar…
BM: Quando pode ser uma forma de expressão radical da liberdade…
ER: Claro. Trata-se de uma categoria antropológica. A morte voluntária existe em todas as sociedades. Se você coloca o suicídio na categoria das doenças mentais e procura erradicá-lo com recursos químicos, não vai dar certo. Não é possivel pensar a humanidade assim. O mesmo vale para a homossexualidade. O medo era de que, se houvesse legalização, todas as crianças criadas por homossexuais se tornariam homossexuais. Mas não é assim. Todas as pesquisas mostram que, quando a gente é educado por um certo tipo de pais, tende a fazer o contrário.
A homossexualidade não é uma escolha. Trata-se de uma categoria cultural. Mas existe um enigma da homossexualidade. Freud tentou teorizar a homossexualidade masculina e a feminina. Disse que não eram a mesma coisa, e nisso tinha razão. Mas sua teoria está ultrapassada. Dizer que a homossexualidade resulta de uma relação exclusiva com a mãe, que o homossexual é um bissexual que se ignora…. esta gênese da homossexualidade, que se passaria durante o Complexo de Edipo, não faz sentido, porque constatamos que a atração pelo mesmo sexo existe desde muito cedo. Trata-se de um enigma.
BM: Tem a ver com o narcisismo. A gente gosta do semelhante.
ER: Não se sabe. Foi uma teoria válida num determinado momento. Na teoria de Freud, existem invariantes, como o inconsciente, a sexualidade, o desejo de morte, que existem em todas as sociedades. A homossexualidade é uma invariante. Mas a gênese dela é complicada. Constatamos que a atração pelo mesmo sexo aparece cedo, que a homossexualidade não está ligada a uma repressão da mãe e tampouco a um gene. A explicação não está na natureza, mas na cultura.
BM: Mas será mesmo que é preciso explicar?
ER: Não podemos não explicar. Sabe por quê? Porque a ciência precisa explicar. Saber por que motivo 10 por cento da humanidade se sente atraída pelo mesmo sexo é uma questão verdadeira. Sempre houve homossexuais, desde sempre. Foram classificados de maneiras diferentes segundo a cultura. Na Grécia antiga, fizeram dos homossexuais uma categoria intelectual. O homossexual não podia existir na Grécia antiga a menos que formasse família com uma mulher. O homossexual que não fizesse isso era condenado. Durante o cristiniamo, a homossexualdiade foi vista como algo demoníaco. O olhar da burguesia também foi este. Agora, eu me digo que, a partir do momento em que a homossexualidade for normalizada…
Há hoje homossexuais de 30 anos que vão para análise por problemas neuróticos. “Meu companheiro me enganou, me deixou infeliz. Foi embora com outro”. Qual é a diferença entre isso e uma neurose de ciúme? Percebemos que a normalização levou os homossexuais a viver como os outros. Por outro lado, eles não têm mais a necessidade de se marcar fisicamente, de ser efeminados. Isso não se vê mais hoje em dia. No meio disso, emergem homossexualidades patológicas. Sempre existiram. Há homossexuais que reivindicam a posição de perversos da civilização. Eles têm o direito – e tudo bem. São, em geral, mais reacionários do que os outros. Há muitos homossexuais que eram contra o casamento para preservar a posição de maldito da civilização. Mas, agora, nós vamos começar a compreender alguma coisa. Possível que não seja sempre a procura narcísica de si mesmo. Por exemplo: há grandes diferenças entre a homossexualidade masculina e a feminina. As mulheres homossexuais vão em direção à bissexualidade por decepção. Não é o caso dos homens.
BM: Há muito tempo, você escreveu que o futuro da psicanálise estava no continente latino-americano, graças à imigração na Argentina e à força da universidade brasileira. Você acha ainda que é verdadeiro?
ER: Acho, embora os brasileiros digam que estão sendo invadidos pelo organicismo, pelo cognitivismo. O que eu penso do futuro é que os brasileiros, mais do que os argentinos, têm o ecletismo. Abandonaram a força dos dogmas. Quando uma teoria é muito forte, ela faz uma revolução e depois a revolução se torna dogma… termina com um ditador. Mas eu não renuncio à revolução. Os brasileiros tiveram a inteligência de não se tornar dogmáticos.
BM: Você sabe que isso está ligado à cultura brasileira?
ER: Sei, está ligado à cultura brasileira, à mestiçagem, à antropofagia. Orientei um número suficiente de teses para constatar isso. Trata-se de uma sociedade em que há muita mistura, e isso se traduziu pelo fato de que há menos dogma. O problema é que existe, no Brasil, um número considerável de sociedades psicanalíticas, onde qualquer coisa vale, onde se misturam as psicoterapias corporais, as psicoterapias de casal… Usaram a psicanálise para tudo na vida. Os psicanalistas tomaram tudo. Na França, não é assim. Será que os brasileiros têm razão? Acho que sim, mas, ao mesmo tempo, é difícil aceitar o ecletismo. Há muitos psicanalistas brasileiros que flertam com a sofrologia, com as medicinas paralelas, as medicinas mágicas. Sei de vários psicanalistas brasileiros que se ocupam de doenças ditas psicossomáticas de maneira insensata, com a teoria de que tudo é de origem psíquica. Acredito na ciência e, portanto, na ciência médica. Mas a gente vê que tem uma efervescência considerável.
BM: O fato é que, no Brasil, era preciso fazer outra coisa. Quando voltei ao Brasil, depois da minha análise com Lacan, me dei conta de que, para entender a cultura brasileira, era preciso escutar o povo, os carnavalescos, os jogadores de futebol…
ER: Nós fizemos isso na França através da psicoterapia institucional. Você tem razão, mas nós tínhamos feito isso com a introdução da psicanálise nas instituiçoes psiquiátricas, o que não existia no Brasil. Mas isso não existe mais. A psiquiatria se tornou biológica.
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1. “Freud não foi misógino, diz Elisabeth Roudinesco, autora de nova biografia”, entrevista especial para a Folha de S. Paulo, publicada em 9 de março de 2016, por ocasião do lançamento brasileiro de Sigmund Freud — na sua época e em nosso tempo.
2. Elisabeth Roudinesco, historiadora da psicanálise e psicanalista, é professora na École Pratique des Hautes Études em Paris e participa ativamente na mídia, colaborando no jornal Le Monde. Autora de renome, temm diversos livros traduzidos no Brasil, como Por que a psicanálise? e Filósofos na tormenta.
3. A Sociedade Psicológica das Quartas Feiras foi um grupo criado em 1901 por Sigmund Freud para debater e fazer crescer a psicanálise. Reunia inicialmente seus colegas Alfred Adler (1870-1937), Wihelm Stekel (1848-1940), Rudolf Reitler (1865-1917) e Max Kahane (1866-1923). Seis anos depois, em 1907, esse círculo, já com 22 membros, foi dissolvido e substituído pela Associação de Psicanalise de Viena a WPV (Weiner Psychianalytische Vereinigung), que foi modelo para as sociedades reunidas na International Psychoanalytical Association (IPA), a partir de 1910.