Sem a palavra, não existimos
Revista Veja, 11/05/2011
O discurso do rei é a história do pai da Rainha Elizabeth, que se vê obrigado a assumir a realeza porque Edward VII, o irmão, abdica do trono. Para tanto, tem que vencer a gagueira datada da infância. Uma das críticas sobre este filme, merecidamente ganhador de 4 oscars, diz que o príncipe se cura graças aos «métodos pouco convencionais de um terapeuta da linguagem». De que forma procede este terapeuta, cujo nome é Lionel?
Não tem nenhuma credencial oficial para fazer o que faz. Autoriza-se a clinicar por ter se ocupado de soldados que voltaram da guerra incapacitados de falar. Curou-os pondo-se à escuta dos mesmos, incitando-os a falar e se escutar. Valeu-se da escuta para que o soldado, reduzido à mudez, voltasse a ser sujeito da palavra, isto é, um ser humano.
Lionel procede como o psicanalista. Também por isso desrespeita as convenções. Não chama o príncipe Sua Majestade porém de Bertie, como na infância. Quando Sua Majestade protesta, Lionel responde com uma frase de Shakespeare: My castle my rules. Uma frase que traduzida livremente é: Na minha casa, mando eu. Não diz isso por autoritarismo mas porque Bertie é tratável e Sua Majestade não. Bertie pode, como na infância, brincar, e, é através da brincadeira, que ele conseguirá superar a gagueira e sustentar o próprio discurso. Tão importante é a brincadeira na cura que, na Cathedral de Westminster, Lionel chama de poleiro o trono, onde Bertie deverá proferir o primeiro discurso. “–Sente aí no seu poleiro”.
O discurso do rei é um filme inaugural por duas razões. Primeiramente porque ousou focalizar o sujeito na sua relação com a palavra e mostrar assim, ao grande público, que nós dependemos dela para existir. Em segundo lugar, por ter privilegiado a escuta, desqualificando os métodos que não levam em conta a vida subjetiva, a história de cada um.
O fato é que, apesar da dificuldade, o príncipe se torna George VI, o rei que declara a guerra contra os nazistas e o faz com um discurso impressionante, provando que era maior do que ele mesmo e todos nós podemos nos superar. Isso tudo graças a Lionel que, ao fim e ao cabo da travessia, Bertie chama de amigo, tratamento justo porque o amigo faz pelo outro o possível e o impossível, dedica-se inteiramente. Por considerar que não perde tempo com isso, ao contrário, ganha. O belo filme de Tom Hooperpode ser visto como a ilustração de uma frase: O amigo quer contentar o amigo.Uma frase simples que serve para saber quem é quem. Ou, noutros termos, para separar o joio do trigo.