Romance eletrônico no transatlântico
Haquira Osakabe (1)
Conhecida nos meios intelectuais de São Paulo pelas qualidades de psicanalista e ensaísta, Betty Milan impôs-se desde o início de sua carreira com três respeitáveis títulos: O jogo do esconderijo, As manhas do poder, O que é o amor. Desde o início, revelou-se ela não apenas ser uma original e perspicaz pensadora e crítica da cultura, mas também ter uma inegável propensão literária. Falo de um certo apego ao gosto da invenção e da imaginação, que se revelou para mim desde a leitura de O jogo do esconderijo, em que faz uma bela reinvenção das estratégias do psicodrama, tão em voga na época, e confirmou-se sobretudo no ensaio “Diabolavida” (incluído em As manhas do poder), onde reconta sua visita a uma mãe de santo, desvendando as artimanhas da magia. Além do mais, imagino que quem tenha lido O que é o amor, o inventivo ensaio em que aprofunda dramaticamente a análise das tensões vividas pelos amantes, dificilmente deixará de render tributo à sua contribuição para a compreensão do tema.
O amor, suas armadilhas, seus desdobramentos, na verdade são o tema mais constante de Betty Milan na sua segunda carreira, a de ficcionista. O sexophuro, A paixão de Lia e o monólogo teatral A paixão constituem a prova disso. Com um domínio inegável dos instrumentos linguísticos, o que sempre deu a seus textos uma leveza e uma musicalidade mais próximas da poesia, sua ficção sempre se ressentiu da interferência forte da ensaísta, sobretudo porque (descubro isso agora) Betty Milan é pessoa de opinião e não abre mão disso nem mesmo na ficção. Há sempre um movimento reflexivo a impor-se sobre o drama e suas personagens a quem se deve conceder o máximo de liberdade possível. Essa restrição, no entanto, não se aplica a esse estimulante romance O amante brasileiro (da A Girafa Editora), que o leitor poderá ler quase que de uma só tacada.
Baseado todo ele numa troca de e-mails entre amantes, Betty trama essa troca com uma bem urdida tática de intervenção reflexiva: ao longo do romance, a personagem feminina (Clara), na condição de cronista sobre coisas do amor, recebe contundentes depoimentos de leitores que, além de entrecortarem oportunamente as trocas de mensagens entre ela e seu amante (Sébastien), transportam-nos para o território vivo das mazelas (perversões), violências e dissonâncias amorosas. Os textos dos leitores-personagens são curiosos, cruéis, às vezes beirando o grotesco. Os textos trocados entre a personagem feminina (moradora no Rio) e seu distante amante (francês) são juras de amor, formuladas com inegável beleza, em que o sublime e o ridículo se entrecruzam com harmonia. Afinal, é no amor, segundo os grandes teóricos, que se tocam esses extremos.
Muito se poderia dizer sobre o andamento dramático do texto e dos expedientes criados pela autora para dar-lhe o ritmo e a harmonia que sustentam esse seu novo e bem-vindo trabalho, qualidade cuja análise dependeria de tempo e atenção maiores. A única ressalva que eu faria ao livro é o aviso “Ao Leitor” que o introduz. É desnecessário. O romance justifica-se muito bem por si mesmo.
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1. Haquira Osakabe foi professor universitário, tendo atuado na Unicamp e também na Georgetown University, em Washington. Faleceu em maio de 2008. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10/01/2004