Baal, um romance da imigração, de Betty Milan
Raquel Naveira*
Profundo é o drama do refugiado, daquela pessoa que, sofrendo perseguições devido à sua raça, religião, nacionalidade, deixa seu país de origem em busca de melhores condições de vida. A imigração, os grandes deslocamentos, a coragem de seguir em frente e explorar o desconhecido é a base de toda literatura épica.
Os árabes chegaram ao Brasil em fins do século XIX e no começo do século XX. Espalharam-se por todos os quadrantes. Muitos sírios e libaneses aqui desembarcaram em razão dos conflitos no Império Turco Otomano, que expulsava os cristãos de suas terras.
Vários romances tiveram como pano de fundo esse contexto: Amrik, de Ana Miranda, a saga vista pelos olhos de uma jovem dançarina, com o clima mágico das Mil e Uma Noites; A Descoberta da América pelos Turcos, de Jorge Amado, com libaneses se instalando na região cacaueira da Bahia; Dois Irmãos, de Milton Hatoum, narrando a tumultuada relação de ódio entre gêmeos, numa família de Manaus. Também eu escrevi um romanceiro intitulado Sob os Cedros do Senhor, com poemas girando em torno de minha memória afetiva e comprovando que os cedros sagrados também fincaram raízes no sul de Mato Grosso.
Chega às minhas mãos Baal: um romance da imigração, de Betty Milan, escritora paulista, médica especializada em psicanálise na França com Jacques Lacan. Romance forte, comovente, de quem sabe trabalhar com a escuta, com a oralidade, com a rememoração. A história de capítulos curtos, que nos tiram o fôlego, é narrada por Omar, o patriarca, o personagem principal, já falecido, como se pudesse ver de outra dimensão tudo o que foi e tudo o que aconteceu depois de sua morte, numa superposição de planos temporais. “Omar” é nome típico de uma raça, um nome no qual cabe “o mar inteiro” dentro. Omar, após um incidente, é forçado a sair do seu país no Oriente Médio. A autora não cita qual seria esse país, talvez por considerar que o romance diga respeito a todo imigrante. Uma terra misteriosa, ancestral, de fenícios, navegadores e comerciantes. Uma paisagem de contrastes e de beleza natural. De montanhas brancas de neve. De vazios e silêncios cercados por encostas rochosas. Aporta numa próspera cidade brasileira, também não revelada, mas, pelas marcas do texto, poderia ser uma São Paulo com suas mansões suntuosas dispostas com elegância pelo “espigão” da imponente Avenida Paulista. Uma cidade, onde, freneticamente, casas e prédios são construídos e demolidos no mesmo lugar.
É uma trama familiar, que abre com estas frases emblemáticas: “Aprendi a duras penas que a família pode ser uma armadilha. A gente cai nela porque prefere ignorar que o amor pode virar ódio.” Principalmente quando há interesses e uma herança em jogo.
Omar atravessara o oceano, enriquecera na mascatagem, tornando-se próspero atacadista e erguera um palácio, o Baal, para sua filha única, Aixa. Por que chamava aquela joia arquitetônica de Baal? Baal, a divindade adorada por tantas comunidades antigas do Oriente. Um deus que exigia sacrifício de crianças em rituais. Omar não explica, apenas descreve: “… um palácio que é um oásis, colunas como palmeiras e fonte que jorra continuamente. O arquiteto não poupou motivos solares na decoração… deixou os pégasos e os pássaros tomarem as frisas. O edifício foi construído por mãos de homens, mas parece ter sido feito em diferentes épocas… arcos árabes, românicos, góticos. A natureza está tão presente fora quanto dentro. Tudo concebido para alojar várias gerações… atravessar o tempo.”
Os esbanjadores descendentes de Omar dilapidam sua fortuna. Os filhos de Aixa, Henrique, Francis e Lisa se opõem uns aos outros. Querem demolir o palácio para vender o terreno. Desalojaram Aixa, já idosa, a governanta e o cachorro Campeão para um apartamento minúsculo e sombrio, um “cubículo”.
Do alto, de um lugar onde “já não sente calor”, Omar tudo observa indignado. Já não tem corpo, mas existe, é sobre-humano, tem necessidade de contar sua história. Constata: “Henrique só tirou Aixa do palácio porque ela já não tem força. A idade, “artrose nos joelhos e nos pés.” Sim, a velhice, com sua fragilidade e impotência, o final de inverno e solidão, é outro tema deste romance reflexivo e pungente.
Omar reconhece, aos poucos, num processo, os seus próprios erros. Não conseguiu transmitir seus valores, não formou a filha Aixa, a “querida”, para ser sua sucessora. Viu-a apenas como uma princesa enfeitando o seu Baal, símbolo de sua riqueza, pois um palácio sem princesa não tem sentido. Percebeu tardiamente que “a segurança que a riqueza dá é ilusória”. Não fez um testamento protegendo Aixa, talvez pelo simples fato dela ser mulher.
Durante o relato, aromas e sabores de uma culinária riquíssima, onde tudo pode ser transformado em iguarias exóticas, preparadas com os frutos da terra e oferecidas generosamente, aparecem pelas mãos de Íris, a noiva, depois esposa de Omar, mãe de Aixa, “mãe de todos”. “Íris se desdobrava na casa e na cozinha. Não sabia falar a língua, mas conseguia ensinar os pratos.”
O romance transita entre fatos do passado longínquo, desde a chegada de Omar, do encontro com os primeiros patrícios e o presente, com Aixa necessitando agora de cuidados, de uma cadeira de rodas, pois “passa o dia inteiro fechada em casa”, “sonhando em voltar para o Baal, sua razão de vida”. Mergulha em delírios. Desmaia no banheiro. A decadência, o abandono.
O caso de Saad, o primeiro patrão de Omar, impressiona. Saad era um vendedor persuasivo, para quem “qualquer casa- rica ou modesta- significava venda”, que “nunca levava a sério uma recusa”, falando e argumentando até amarrar o negócio, criou o jargão “Bom e Barato”. Vivia para os contos de réis, para o dinheiro. Dinheiro e mais dinheiro. Como Omar, também tinha uma única filha, Marta, mas trabalhava como se tivesse um batalhão. Desejava que ela se casasse com um pretendente escolhido por ele, segundo a tradição de sua aldeia. O silêncio entre pai e filha se agravava. Ela estava apaixonada, uma “paixão devoradora” por um tal de Celso. Decidem fugir. Saad vai ao encalço dos amantes e os mata, depois se suicida. Morreu “fulminado pelo ódio”, após tanta luta. A tradição da vingança.
Interessantes os acontecimentos históricos que precedem essa tragédia e o nascimento de Aixa: o final do Império, a abolição da escravatura, a proclamação da República. Omar adquire da viúva de Saad o próspero negócio do “Bom e Barato”, na hora certa, tornando-se um comerciante em grande escala.
Omar assiste à morte de Aixa, a princesa de Baal. Pune-se pelo fato de ter usado a filha. Conclui que, se ela acaso fosse sua sucessora, teria feito do palácio um memorial da imigração. Sob a luz do arrependimento, confessa que Baal foi, ao mesmo tempo, o deus do céu e do inferno. Talvez, somente nesse instante eterno de rendição, Omar tenha finalmente, encontrado a paz.
Justifica-se assim a epígrafe de T.S. Elliot escolhida por Betty Milan para o seu Baal:
“Morremos com os moribundos
Repara, eles se vão e nós vamos com eles
Nascemos com os mortos
Repara, eles regressam e nos trazem com eles”
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* Raquel Naveira é escritora, professora universitária, crítica literária, mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Baal, um romance da imigração, de Betty Milan
Publicado na Academia Cristã de Letras – SP