Quem sabe o que diz vive melhor
Betty Milan
Este texto foi publicado com o mesmo
título na Folha de S. Paulo; 14/06/2001.
Apesar do céu azul, o dia está gelado e ele entra tiritando. De terno, casaco, chapéu e cachecol, a esposa olha e diz: “Vestido assim, você me faz pensar no seu avô”. Ele, que está na curva dos 50, não gosta. Vira abruptamente as costas e vai embora, batendo a porta. Não dá ouvidos ao protesto da mulher.
A cena, que eu infelizmente presencio, me deixa sem jeito. Dizer que ele podia ter um pouco de humor? Que ela podia não ter comparado o marido ao avô?
Não tomo partido, claro. Sei bem que entre marido e mulher não se mete a colher. Mas a frase O peixe morre pela boca não me sai da cabeça e eu acabo refletindo sobre o adágio.
Por que a morte pela boca? Porque o peixe morde inadvertidamente a isca, não resiste ao impulso de morder.
E por que o homem é a ele comparado? Por não resistir ao impulso de falar, entregar-se à fala como o peixe à isca e se tornar vítima das próprias palavras. Noutros termos, a espontaneidade é arriscada e, às vezes, custa caro. Há quem veja nela uma forma de tirania.
Isso acaso quer dizer que nós devemos nos censurar? Não é de censura, mas de controle que se trata. Quem se autocensura faz mal a si mesmo. Quem se autocontrola evita fazer mal ao próximo e a si mesmo. Isso é o que está implícito na expressão O silêncio é de ouro, outro adágio popular.
Não se trata de ser politicamente correto ou incorreto, de obedecer ou desobedecer a uma moral social, mas de ser consequente, não dizer a verdade quando ela pode ser malévola. Mesmo porque a verdade não existe, é sempre relativa ao ponto de vista. Isso, aliás, é o que diz Fernando Pessoa num dos seus muitos fragmentos do Livro do desassossego. Conta que estava passeando e encontrou na rua dois amigos com versões contraditórias do mesmo fato e que aos dois ele deu razão. Por ser sábio, Fernando Pessoa era delicado.
A poesia, aliás, é sempre filha da delicadeza, mesmo quando o poeta declara de saída: “Canto a beleza, canto a putaria”, como faz Bocage no poema “À Manteigui”. Porque através da poesia ele nobilita a putaria e assim inocenta a condição humana. Nada é mais meritório do que a licença poética e ela nada tem a ver com a licença tirânica de quem não sabe o que diz e, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, paga por isso.
Já é tempo de levar a sério o adágio Quem diz o que quer, ouve o que não quer.