Psicanálise e Literatura I

Psicanálise e Literatura

 

P: O que pode o romance ensinar à psicanálise sobre a cura analítica?
BM: Nem Homero e nem Virgílio conheceram o humor, que toma forma com Cervantes. O humor é uma invenção ligada ao nascimento do romance. Como diz Octavio Paz, o humor torna ambíguo tudo que ele toca. Precisamente porque o humor é possível no romance, este pode iluminar a experiência analítica de uma maneira nova. A teoria tende a se apropriar da experiência anulando a ambiguidade, já o romance não prescinde da ambivalência, à qual está ligado o prazer. A teoria se organiza segundo o princípio da não-contradição, o romance, não. Um bom exemplo disso se encontra em Rabelais: a cena em que Panurge deixa afundar os vendedores de carneiros, fazendo o elogio da outra vida.

P: O que o seu romance lhe ensinou sobre a cura analítica?
BM: Que a questão da língua é fundamental para os descendentes dos imigrantes e que o motivo pelo qual a gente procura um determinado analista e não outro é a chave para entender a análise de um sujeito.

P: Porque ter escrito um romance cujo tema é a experiência analítica?
BM: Para rir de uma experiência séria e que desautoriza o riso. Isso não significa, obviamente, que o romance seja um acerto de contas, como diz Milan Kundera. O romancista que procura acertar as suas contas está condenado a um naufrágio estético total e certo. Escrevi também para me liberar do peso dos ancestrais e do analista, pagar a eles uma dívida imaginária e realizar o desejo de me tornar romancista. Para poder dizer sobre a experiência da cura analítica, o que não poderia ser dito no contexto de uma instituição psicanalítica. Para fazer essa experiência existir fora do contexto onde ela realmente ocorre e transmiti-la a quem não passou por ela. Para mostrar através da análise as consequências da imigração e do subdesenvolvimento.

P: O que o romance mostra?
BM: Que a imigração é dramática para os descendentes dos imigrantes, que são destinados a um país simultaneamente valorizado e desvalorizado pelos ancestrais.

P: O que define a identidade da personagem?
BM: Segundo Milan Kundera, todos os romances procuram responder às seguintes questões: o que é um indivíduo? em que a sua identidade reside? Em O Papagaio e o Doutor, a identidade não se define através das ações da heroína, dos seus pensamentos ou sentimentos, mas através dos ancestrais, da história e do discurso deles. O romance coloca em cena a constituição do indivíduo pelas sugestões e injunções emanadas do passado. Se tratava de apreender a identidade de um indivíduo, de um personagem de uma maneira que ultrapassasse o romance psicológico. Chamcha ou Farishta, os personagens dos Versos satânicos, não são apreensíveis por uma descrição detalhada dos seus estados de alma. O mistério deles reside na coabitação de duas civilizações no interior da sua psiquê, a indiana e a europeia. Seriema também não é apreensível através dos seus estados de alma. O seu mistério reside na coabitação das diferentes culturas no seu interior.

P: O que você espera da literatura ?
BM: Que ela possa não banir nenhuma experiência humana.

P: Quais são os banimentos hoje existentes ?
BM: São muitos. Vou enumerar três:
a) O das línguas consideradas não literárias, como, por exemplo, da língua falada pelos negros numa certa literatura americana.
b) Os assuntos para os quais supostamente não há mercado, como, por exemplo, os meninos de rua ou o Brasil na França, que levou Philippe Sollers a me dizer no passado que não escrevesse sobre o Brasil, porque o Brasil não existia.
c) As experiências formais, que não correspondem aos modelos tradicionais. Com isso, ficam excluídas as experiências humanas, que não prescindem da renovação formal para se realizar. Hoje em dia, por exemplo, o romance, na cola do cinema, deve se encaminhar sem hesitação em direção ao fim. Esse tipo de exigência, por exemplo, impede a rememoração analítica de ser um tema romanesco, porque ela não acontece sem idas e vindas determinadas pela resistência subjetiva à rememoração. Se não é possível aceitar o imperativo sadiano, segundo o qual o escritor deve dizer tudo, também não é possível aceitar a ideia de que algo deva ficar fora do campo da literatura por não corresponder aos modelos existentes ou por não satisfazer o mercado.

P: O que caracteriza a sua literatura?
BM: O meu romance é um romance do sul. Sem perder o senso do real, ele resulta de uma imaginação sem freios – é um texto em que, guardadas as proporções, a seiva rabelaisiana corre. A grande obra fundadora de Cervantes foi animada pelo espírito do brincar, um espírito que depois se tornou incompreensível pela estética romanesca, pelo imperativo da verossimilhança. O meu trabalho se inscreve na tradição de Rabelais e dos pré-românticos, que escreviam sem fabricar suspense, sem construir uma história e sem simular a verossimilhança, sem descrever uma época, um meio, uma cidade. Seriema é parente próxima do Quixote, ela é um Quixote de saias, como disse Maury, o grande crítico literário belga. A arte moderna é uma revolta contra a imitação da realidade. Sustenta-se nas leis autônomas da arte.

P: O romance tem futuro na sua opinião?
BM: A filosofia ocidental não soube pensar a vida do homem, a metafísica concreta. É o romance que está predestinado a ocupar esse terreno vago. O maior tesouro da sabedoria existencial se encontra nele.

_____
Sem referência.