Por uma nova educação sentimental
Lançamento de Fale com ela, 2007
O Fale com ela resulta de um projeto antigo, datado dos anos 1980, quando o jornal O Globo me convidou para substituir Shere Hite, autora do Relatório Hite sobre a sexualidade. O jornal me pediu para fazer um teste, mas não aprovou a resposta, que não era politicamente correta. Passadas duas décadas, eu propus o consultório sentimental ao Otavio Frias Filho. Depois de um teste em que eu respondi a três cartas de leitores, a Folha de S. Paulo aceitou a proposta. Em vinte anos, houve uma evolução dos costumes e uma liberdade de expressão maior se tornou possível.
Fale com ela reúne as colunas publicadas na Folha, nas quais eu respondo a questões sobre o amor, o sexo e a morte. A coluna se inscreve numa tradição da nossa cultura – a do consultório sentimental –, que data da Antiguidade. Assim, na maioria de suas cartas e tratados morais, Sêneca atende a amigos que escrevem pedindo conselhos. No Brasil, o consultório sentimental mais conhecido foi o de Nelson Rodrigues, que se valia do pseudônimo Mirna e respondia como se fosse uma cartomante. Entrava no papel de Mirna, uma das tantas personagens criadas por ele, e fazia o teatro acontecer no jornal, realizando-se também aí como dramaturgo.
Nas colunas, eu respondo às mais variadas questões dos leitores. Da mulher que não entende por que deseja um marido violento na cama. Da outra que é infeliz por gostar de um homem que “é um cachorro”. Do marido que veste a esposa de call girl e se maldiz por ser exibicionista. Do rapaz que prefere o amigo à namorada para transar, só que não gosta de gay. Do jovem da favela, que se diz admirado tanto por grandes criminosos quanto por empresários e não sabe se vai pelo caminho do crime ou pelo caminho do bem.
Respondo da posição do escritor que tem formação psicanalítica, e não da posição do analista. Simplesmente porque não existe cura analítica pelo jornal. O que o colunista pode fazer é indicar o caminho no qual é possível encontrar uma solução. Noutras palavras, ele não pode dar a solução, a menos que seja um ilusionista.
Para desenvolver a coluna, me baseei na queixa e no pedido do leitor, assim como no estilo do seu texto, nas repetições e nos lapsos. Procurei esquecer o que havia estudado para me debruçar livremente sobre a pergunta até encontrar a resposta que ela sugeria. Só então eu me remeti às minhas leituras, a fim de ilustrar a afirmação com textos de outros autores, os que mais me marcaram ao longo da vida e, de certa forma, serviram para a minha educação sentimental.
Não foi a obediência a esta ou àquela doutrina que me guiou neste trabalho. Foi o desejo de aprender fazendo e o de transmitir duas ideias. Por um lado, que é tão importante se liberar dos preconceitos quanto das obrigações sexuais. Por outro, que, para não estar continuamente sujeito ao inconsciente, é preciso levar em conta a sua existência e decifrá-lo quando isso se impõe. Quero dizer que nós podemos nos liberar dos imperativos de toda sorte, desde que tenhamos a humildade de reconhecer que o inconsciente faz e fala por nós.
Procurei fazer a palavra liberdade ressoar, valorizando a particularidade de cada história e promovendo a diferença de cada leitor. Talvez por isso eu tenha recebido e-mails de pessoas dos dois sexos, de idades diferentes e de todas as camadas sociais.
Os temas abordados no livro são muitos e seria exaustivo expô-los nesta pequena apresentação do Fale com ela, que reúne as colunas e explicita as referências que utilizei. Destina-se a quem deseja se debruçar sobre a experiência alheia para se conhecer. Exatamente como no romance.
Depois de ter reunido as colunas no livro, concluí que esse trabalho implica uma nova educação sentimental e que ela hoje se impõe. Basta analisarmos a história da sexualidade na última metade do século passado para nos dar conta disso.
Em 1948, Alfred Kinsey publica seu primeiro relatório, O comportamento sexual do homem, e, em 1953, o segundo, O comportamento sexual da mulher. Nesses relatórios, ele revela que os homens e as mulheres transgrediam secretamente as regras estabelecidas. O primeiro relatório mostrou que 50% dos homens tinham atração por homens até o fim da adolescência. Que 54% dos solteiros de 30 anos tiveram relações homossexuais e 37 % dos homens tiveram pelo menos uma relação homossexual na vida. Os números falavam e falam por si. O segundo relatório mostrou que 62% das mulheres se masturbavam; que um terço das mulheres casadas tinha tido pelo menos uma relação sexual antes de casar.
A repercussão do relatório Kinsey no mundo inteiro foi enorme. Provocou um escândalo liberador. Quem podia insistir nos tabus diante dos dados apresentados pelo cientista visionário? Isso foi nos anos 1940 e 1950. Depois, nos anos 1960, houve a chamada “revolução sexual”, condicionada pela descoberta da penicilina e da pílula. Já não havia por que ter medo da sífilis e da gravidez indesejada. A palavra de ordem era transar livremente, sem freio algum.
Foi um grande passo à frente. Nós escapamos da repressão imposta às gerações anteriores, só que, para ser liberada, a mulher precisava dizer “sim” a todas as propostas masculinas, e o homem precisava obedecer ao imperativo de ter atividade sexual intensa. Houve uma tirania do sexo, éramos obrigados a transar para provar que éramos livres. O que aconteceu nos anos 1970 permite concluir que, sem uma educação sentimental consequente, baseada nos conhecimentos da psicanálise, a verdadeira liberdade sexual não existe. Porque a liberdade sexual depende da liberdade subjetiva, que nenhuma revolução ensina. O sexo só é livre quando escapa à incriminação, à obrigação e à compulsão. Ou seja, quando o sujeito é livre.
A nova educação sentimental ensina que tanto é possível dizer “não” aos preconceitos sexuais quanto à tirania do sexo. A exemplo disso, a tirania de ter que chegar ao orgasmo, meta que os sexólogos impuseram à sexualidade e contra a qual Bruckner e Fielkenkraut se rebelaram em A nova desordem amorosa (1977), mostrando que a liberação sexual se acompanhou de uma codificação rígida, em que o modelo da sexualidade passou a ser a sexualidade masculina.
Por outro lado, esta nova educação ensina que o inconsciente existe, tem razões que a razão desconhece e que, para não ficar à mercê do inconsciente, é preciso dar ouvidos a ele, aprender a se escutar.
Trata-se de uma educação nova, porque faz a liberdade ressoar, mas ensina que a liberdade só é possível se nós levarmos em conta a existência do inconsciente, que pode nos escravizar. Vários são os exemplos disso no Fale com ela, que eu escrevi me surpreendendo do começo ao fim. Ele é, na verdade, um caleidoscópio de pequenas histórias.
Para lançar este livro, sugeri à editora que nós o fizéssemos no contexto de um debate sobre a nova educação sentimental, uma educação que não está codificada, mas está implícita em cada uma das colunas e nas máximas que eu criei especialmente para o livro.
São 75 máximas, mas eu gostaria de evocar cinco, que resumem a filosofia do Fale com ela, um livro que faz a apologia da liberdade e da vida, além de ensinar que, para ser livre, é preciso levar em conta a existência do inconsciente.
PARA SER SÉRIO É PRECISO BRINCAR
QUEM AMA LIBERA
NINGUÉM ESCOLHE SER HOMO OU HETEROSSEXUAL
O INCONSCIENTE FAZ E FALA POR NÓS
A MORTE ENSINA A NÃO PERDER TEMPO
Isso é o que eu quero dizer para lançar um debate que começa mas não termina hoje, na presença de vocês todos e com estas duas mulheres da minha geração – a consultora de moda Gloria Kalil e a filósofa Olgária Matos –, mulheres que eu admiro e fiz questão de convidar pelo tanto que elas podem contribuir para a reflexão sobre o tema que eu proponho e também sobre outros temas conexos.
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Lançamento do livro Fale com ela, Livraria Cultura, São Paulo (SP), 26 de março de 2007.