Política de Pôncio Pilatos
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Folha de S. Paulo, 14/09/2014
Duas mulheres estão disputando a Presidência da República do Brasil. Trata-se de uma vitória impressionante do gênero feminino. Chega a ser inacreditável.
Não houve no passado um acontecimento equivalente à emancipação das mulheres no século XX, que foi o século delas, embora ainda existam no planeta milhões de vítimas do fanatismo religioso, guetos onde as mulheres não gozam dos direitos fundamentais, não são reconhecidas como seres humanos. Os talibãs, no Afeganistão, impedem as esposas de ir aos hospitais públicos para que não sejam tratadas por homens. E os exemplos poderiam se multiplicar.
O fato é que, no Ocidente, as mulheres têm o direito de ter relações sexuais livres e de controlar a maternidade. Podem optar por ter filhos ou não. Antigamente, morriam de parto e bem mais cedo do que os homens. Com o progresso médico, a esperança de vida aumentou significativamente. Graças aos movimentos feministas, as mulheres tiveram acesso à educação e à vida profissional. Restava conquistar a esfera do poder político, e isso está acontecendo.
Há cinquenta anos, no Brasil, só era dado às mulheres sonhar com uma carreira de profissional liberal. O poder político era para os homens e, apesar da revolução sexual, o machismo imperava nas relações pessoais. Os homens inclusive se prevaleciam da liberação para exigir a entrega das mulheres, que eram consideradas retrógradas se acaso não cedessem. Tratava-se, evidentemente, de uma conduta masculina perversa.
O nosso imaginário mudou, e as brasileiras já se candidatam à Presidência da República. Mas nem tudo que reluz é ouro, porque, para se eleger, são obrigadas a não se manifestar quanto ao direito ao aborto, ainda considerado crime contra a vida humana pelo Código Penal – salvo quando há risco de vida para a mulher, quando a gravidez é resultante de estupro ou o feto é anencefálico. Como Pôncio Pilatos, as candidatas são obrigadas a lavar as mãos.
Do ponto de vista deste código, a vida que conta é a do feto, e não a da mulher, que a lei obriga a se tornar mãe – como se o desejo de ter um filho não contasse e a realidade social também não. A brasileira não é tratada pela lei como um ser humano, mas como um animal, porque não tem opção. No país inteiro, ainda se morre de aborto provocado, a segunda maior causa de óbito das mães em muitas cidades.
Além de expor à morte as mulheres que se recusam a ter um filho que elas não querem ou não podem ter, o Código Penal brasileiro é gerador de delinquência. Obriga a dar à luz mesmo quando não há condições de educar a criança e o futuro desta é o mais incerto. Datado de 1984, este código precisa ser urgentemente revisto. Inclusive porque são as mulheres pobres que ele incrimina. As ricas têm direito ao aborto, pois não é crime fazê–lo fora do território nacional. Injustiça maior do que esta não existe.
Segundo o Ibope, a maior parte da população é contrária ao aborto, mas o Ibope é enganoso. Não estabelece diferença entre ser contra o aborto para si mesmo e ser contra o direito legal ao aborto, que é uma questão de saúde pública e de equilíbrio social. Se a população for esclarecida, o Ibope muda. Esclarecê-la significa mostrar o que o voto contrário ao direito de abortar implica, expor as consequências socias do mesmo.
Quando eu era estudante de Medicina, vi no Hospital das Clínicas mulheres em estado de septicemia por terem provocado aborto. Eram curetadas sem anestesia “para aprender a não mais engravidar”. Depois de terem atentado contra si mesmas, eram punidas no Pronto Socorro por médicos contrários ao aborto. Passou-se meio século e as mulheres continuam a ser punidas no Brasil pelo fato de engravidar contra a vontade – como se fosse possível ter controle absoluto sobre o corpo. Quem vencer as eleições vai governar por todos e não poderá fazer pouco da saúde pública e do equilíbrio social, que requer o direito legal ao aborto.