Peça celebra o amor clandestino

Peça celebra o amor clandestino e permite redescoberta do desejo

 

Sérgio Salvia Coelho (1)

O amante brasileiro celebra o amor clandestino, duplamente tímido, por ser por e-mail – essa modernidade aparentemente desumanizante – e entre dois amantes de mais de 50 anos, no “tempo da delicadeza”, segundo a expressão de Chico Buarque.

Terceira peça de Betty Milan, dá continuidade à sua busca por um “Teatro da Voz”. A autora vence os desafios do gênero, sobretudo por seu grande manejo da língua.

Como boa psicanalista, sabe alternar conceitos abstratos com fatos triviais, em um processo de reconstrução da realidade (que os blogs vêm generalizando) e a consumação física do desejo é quase inteiramente substituída pela volúpia da palavra.

Clara (Luciana Domschke), jornalista brasileira, se apaixona em Paris por Sébastien, professor sufocado pelo casamento, vivido por Ricardo Bittencourt. O amor o transforma em sua identidade cultural: começa a reconhecer a calçada de Copacabana nas curvas do rio Sena, chama de brasileira a sua redescoberta da felicidade. A angústia da separação, exacerbada pela rancorosa intervenção de Claude (Magali Biff), a mulher castradora, terá final feliz, em um clima de quase fábula: o amor ainda é possível na frieza da modernidade.

Fransérgio Araújo, o diretor, tece com vigor todas essas delicadezas, tirando proveito do vocabulário do Teatro Oficina, no qual é um dos atores-celebrantes. Assim, isola os amantes em altares, nos extremos do teatro-rua, e comunga com a plateia com vinho e caldo de cana. Tanto a projeção de imagens como a trilha sonora, às vezes redundando o texto, dão grande sensualidade ao espetáculo, estojo eficiente para a plena e madura Luciana Domschke.

A sua nudez, aqui, não é mais insolência ou busca da inocência perdida, como nas celebrações de José Celso, mas um reencontro feliz com o próprio corpo. A sensualidade de seu parceiro Ricardo Bittencourt, representante do mundo mental francês, está mais no timbre de sua voz e na inteligência com que conduz a frase. Magali Biff, em pequena intervenção, sabe escapar aos clichês da mulher traída, temperando seu rancor com grande dignidade.

É como um Oficina de bolso. Às vezes, a ênfase transborda um pouco e provoca distanciamento. Porém, pertencendo a um projeto que engloba outras duas montagens (Araújo dirige também Querô, de Plínio Marcos, e é ator em O assalto, de Zé Vicente, dirigida por Marcelo Drummond), a montagem de O amante brasileiro deve ser entendida como uma busca de aprimoramento na interpretação individual, em paralelo à celebração coletiva das peças do Oficina.

Para os poucos privilegiados que têm se arriscado a compartilhar esse grande amor, a sensação é de uma redescoberta do desejo, Platão se reconciliando com as sombras eletrônicas da internet. Que chova arroz sobre nossas culpas redimidas.

_________
1. Sérgio Salvia Coelho é critico teatral da Folha de S. Paulo, Publicado em 5/09/2004.