URSS X Rússia
Betty Milan
Este texto foi publicado com o mesmo
título na Folha de S. Paulo, 5/08/1990
Moscou. Irreais as torres da igreja seriam? Os bulbos como carambolas, gomos verde-amarelos, verde-vermelhos, furta-cor. A bandeira do Brasil, yellow submarine, eu vendo me disse. Van Gogh poderia tê-las pintado. Hollywood copiou. Tendo sido encomendada em 1522 por Ivan, o Terrível, para celebrar a vitória sobre os tártaros, a igreja de São Basílio é a comemoração de um imaginário que, sendo russo, é brasileiro, europeu ou americano, é universal.
A Rússia do czar, por fazer sonhar, atravessou os séculos e continua a fazer a Rússia. Quem, vendo se multiplicarem as torres douradas das igrejas do Kremlin, não quer mais e ainda ver? Imaginando talvez que são pomos no céu e a idade ainda é de ouro? Quem, indo a Leningrado, a cidade que Pedro, o Grande, concebeu para se igualar às capitais europeias, não deseja passear pelas ruas olhando o melhor barroco italiano se desdobrar, admirando o czar na sua estátua equestre — “o cavaleiro de bronze”, como dizia o romancista Puchkin (1799-1837) — ou a Grande Catarina, que usurpou o trono, mas se valeu do poder para com o enciclopedista Diderot (1713-1784) fazer a coleção de pintura do Ermitage, adquirir obras de Rubens, Rembrandt, Rafael, Giorgione, Veronese, Van Dick e assim preparar o museu para a surpreendente coleção de impressionistas, entre os quais vários Gauguin que a França, quiçá por não ter uma czarina, perdeu?
O czar tem o mérito de ter feito a Rússia que a União Soviética explora e mostra. Quem lá iria ver o realismo socialista? os monumentos do gigantismo arquitetônico, as praças em que o revolucionário de bronze, terno e bota de camponês, olha fixamente para diante e para cima, convocando quem passa, em geral cabisbaixo, a acreditar no futuro? Amanhã, cadáver, você gozará!
O turista só vai pelo que a estatal Intourist, indiferente à estrela apagada do socialismo, oferece: o luxo do país dos Ivans, dos Pedros ou das Catarinas que, na tradição de criar e recriar suntuosamente a própria imagem, ergueram palácios, catedrais onde cintilam incansáveis os santos e as mais ternas madonas, museus onde foi preservado o tesouro dos ancestrais russos, a grande arte da estepe e da civilização cita, única pelo senso da composição e do dinamismo.
Sim, ao contrário de Kruschev, o secretário geral do Partido Comunista e em consequência governante da União Soviética de 1958 a 1964, que para construir um edifício moderno mandou demolir o Kremlin — uma igreja do século XIV —, Pedro, o Grande, encantado com as joias enviadas a Catarina I pelo governador da Sibéria, publicou um decreto ordenando o recolhimento de todos os objetos antigos encontrados no solo e fez a coleção de que o Ermitage hoje mais se orgulha.
Sumariamente, você compra a URSS, mas é a Rússia que a Intourist vende, ainda que o guia aponte uma estátua de Marx, de Lênin ou o lugar onde ainda estaria a de Stalin se a Perestroika não a tivesse suprimido. Gato por lebre. Para isso você é alojado na periferia da cidade, em hotéis de onde só é possível sair de metrô se conhecer o alfabeto cirílico, e de táxi, se este porventura passar e você se dispuser a pagar os dólares exigidos em vez dos rublos inscritos no marcador, legitimando assim o mercado negro e já se exercitando na divisão requerida para viver na União Soviética — como turista ou como cidadão de um país onde a moeda não vale nada e só o dólar garante uma certa liberdade no sistema.
O russo tende a ser corrupto por força das circunstâncias, e por isso a sociedade autoriza a transgressão, o próprio guia da Intourist explica ao fim da viagem como passar pela alfândega sem que o alfandegário possa detectar o caviar comprado no mercado negro. Que o turista o leve nos bolsos e sobretudo não o ponha na bagagem de mão! Pouco? A corrupção é o denominador comum dos países do Leste Europeu, mas na Rússia ela está em toda parte. Não se trata só do sujeito que corre atrás de você perguntando repetitivamente change money?, mas do restaurante em que você só entra brandindo seu dólar na porta, do garçom que serve desde que o pagamento seja nessa moeda, do chofer de táxi que esconde os preciosos dólares no assento, como o personagem de Soljenítsin, Ivan Deníssovitch, escondia no colchão o seu pão suplementar.
Tudo se compra na Rússia, o lugar no restaurante que estava supostamente lotado, a entrada direta no museu onde, pela lentidão da bilheteria, a fila é incomensurável, os bilhetes esgotados de teatro etc. Tudo e por um preço irrisório! O império da reificação, como diria Karl Marx, que teve a sorte de não ver a cidade de ruas sujas e esburacadas, os edifícios residenciais nos quais, apesar do clima, chega a faltar vidro nas janelas, as lojas onde as filas são quilométricas, os balcões onde só abunda o repolho entre outras verduras murchas, as mulheres nas ruas carregadas como burros por tudo terem de armazenar, as jovens às quais falta um dente, as atendentes do hotel, que por uma caneta Bic se abrem em sorrisos constrangedores, as crianças em farrapos e descalças esmolando autoritariamente no centro de Moscou, como aliás só poderiam, e os eternos policiais fazendo burocraticamente a sua ronda.
Podia o poeta Maiakovski, que pregou a revolução a plenos pulmões, não ter se suicidado? Teria ele escrito que “para o júbilo o planeta está imaturo e é preciso arrancar alegria ao futuro”, por ter desconfiado que a primavera soviética seria a contínua promessa de si mesma? que a promissora revolução de 1917 antes democratizaria a falta e normalizaria a corrupção em torno da qual se organiza a sociedade civil? Sim, todos, explícita ou implicitamente coniventes na recusa da moeda nacional, ou bem não trabalhando por rublos ou sabotando com a ineficácia o trabalho. O restaurante sugerido pelo guia da Intourist estará repleto a menos que você ofereça 1 dólar ou outra moeda estrangeira ao porteiro. O que figura no menu inexiste, a não ser que, por mais algumas moedas (5 a 10 dólares), você compre os pratos escolhidos, além da rapidez do serviço.
Daí, bebendo e comendo, você considera o salão de mármore do começo do século XX, as pinturas murais e os lustres de cristal. Aprecia, mas diz contrariado que o prazer de beber e comer bem não é para os russos e na URSS o país prazeroso é só para exportação.
O caviar se torna indigesto, não por representar o luxo, e sim por remeter à injustiça de que são vítimas os russos e os outros povos do império — os que em princípio não têm direito ao prazer, mas podem ter acesso a ele pela corrupção. O que era ambrosia mais evoca o outro em falta, o pão escondido das vítimas do Gulag, e você então, indisposto, conclui que comeu o caviar de Ivan Deníssovitch.
Não, a URSS não é o Gulag, porém este pode infelizmente servir de metáfora a uma sociedade em que o motor é a carência, e a desvalorização do trabalho é correlata à do dinheiro. “Dê-me um único centavo que seja estrangeiro por estes meus rublos todos”, poderiam dizer o porteiro, a recepcionista, o carregador, o taxista, o bilheteiro, o tripulante do avião e talvez o guarda de olhos tão baços quanto os do revolucionário de bronze que não dá de comer ao povo.