Um papel construído – O que significa ser mãe nos dias de hoje?

Um papel construído – O que significa ser mãe nos dias de hoje?

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Folha de S. Paulo, 11/05/2014

Há trinta anos, a senhora escreveu O mito do amor materno. O livro causou muita polêmica, por ter contrariado a ideia de que existe um “instinto materno”. O livro mostra que o amor materno nada tem de natural. O que a levou a escrevê-lo?
O que me levou a escrever foi uma observação que fiz no Jardim do Luxemburgo, ao lado de casa, e nas praias da Bretanha – pois adoro olhar os pais e as mães com seus filhos. Vi no rosto das mães um aborrecimento incrível por estarem sozinhas com a criança, que brinca na areia. Me pareceu que tinham o sentimento de estar alienadas. Disse para mim mesma que todas vivemos com as nossas crianças momentos magníficos e outros que são chatos. Questionei então o mito do instinto materno, um mito segundo o qual, durante a gravidez, nós sentimos pelo feto – e depois pelo bebê – um amor irresistível e automático. Este amor existe entre os chimpanzés, os macacos, mas não entre nós, que temos um inconsciente, uma história e uma relação com nossos pais. Me perguntei então a quem o mito do amor materno servia.

Qual foi a resposta ?
Acho que o mito serve para atribuir um papel às mulheres, um papel exclusivo. Para os homens, o poder, o domínio do mundo exterior, e, para as mulheres, a casa, o cuidado das crianças, os trabalhos domésticos, pois, a partir do momento em que as mulheres devem ter como papel principal cuidar das crianças, elas ficam em casa – o reino delas, como dizia Rousseau, é o lar. A distribuição dos papéis se fundou, por um lado, na religião e, por outro, na natureza. Com isso, as mulheres eram prisioneiras e se tornava impossível estabelecer uma igualdade verdadeira entre homens e mulheres. A partir do momento em que nós consideramos que homens e mulheres têm papel complementar – ou seja, um faz o que o outro não faz – e que o papel materno estava inscrito na natureza, o caminho se fechou para as mulheres.

Essa ideia surgiu no século XIX?
Foi teorizada no fim do século XVIII por Rousseau, que teve uma considerável influência sobre a sociedade francesa. A ideia se desenvolveu no final do século XIX e perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial.

Desenvolveu-se em função da necessidade de trabalho?
Acredito que não, pois, no século XIX, também se usou a mão de obra feminina. Acredito que haja duas razões. Primeiramente, uma razão demográfica. Dizia-se que as mulheres deviam amamentar, pois o leite materno assegurava a sobrevida das crianças. No século XVIII, só uma criança em cada duas sobrevivia, e isso acontecia porque as crianças eram entregues a babás mercenárias, que não as alimentavam devidamente. Nem as aristocratas, nem as burguesas e nem as pequeno-burguesas queriam amamentar. Preferiam fazer outra coisa. Não deixa de ser uma maneira de dizer que o papel de mãe não lhes interessava. Isso acontecia com a aprovação da sociedade, dos médicos… No século XIX, fizeram uma pressão incrível sobre as mulheres para que ficassem em casa e amamentassem durante seis meses, um ano. Isso para que os bebês sobrevivessem. A França precisava de soldados e de camponeses!

Portanto, a pressão foi decorrente das necessidades do trabalho e da guerra.
Sim, mas, quando a indústria se desenvolveu e surgiram as minas, também as mulheres foram para o trabalho.

A senhora falou da influência de Rousseau na sociedade francesa. Qual o impacto do seu livro?
Não tenho a pretensão de ser um Rousseau de saias. Não sei exatamente qual foi o impacto. Em 8 dias, o livro estourou. Acho que muitas mulheres tinham o sentimento de que o amor materno não é natural e ficaram contentes com o fato de que uma universitária fizesse uma teoria sobre o assunto. Porque é difícil, como mãe, dizer: “Me aborreço às vezes com os meus filhos, é pesado demais etc.”. Acho que expressei algo que as mulheres da minha geração pensavam. Todas queriam trabalhar, ser independentes, e viviam culpabilizadas pelo que sentiam.

Portanto, seu livro serviu para desculpabilizar as mulheres.
Acho que, na França, sim.

E nos Estados Unidos, qual foi a repercussão do livro?
Nos Estados Unidos, o livro foi muito polêmico. Chegou cedo demais. Circulou entre os intelectuais. O público americano não estava preparado para ele.

A maternidade é novamente o tema de O confilto, a mulher e a mãe, publicado em 2010. Nele, a senhora dá ênfase a dois fatos: queda da natalidade em vários países da Europa e a volta a uma concepção reacionária da maternidade em nome de uma certa ecologia “pura e dura”. Como a senhora explica o retrocesso?
Acho que há mais de um motivo. Uma das causas é a crise econômica, e as mulheres da geração seguinte à minha foram as primeiras a ser afetadas pela crise. Entre elas, as mais sofisticadas, as que tinham curso universitário, se perguntavam de que servia ter uma dupla jornada de trabalho se, de um dia para o outro, elas podiam ser despedidas – jogadas no lixo como um lenço de papel – pela empresa onde trabalhavam. “Como mulher, ganho menos do que os homens. Para mim, é difícil chegar aos primeiros postos. Será que não é melhor me consagrar a uma criança para fazer dela um adulto bem-sucedido do que me matar pelos outros?” Houve um desamor entre a empresa e as mulheres. Com o discurso ecológico, surgiu a ideia de que a geração anterior pecou pelo consumismo excessivo em detrimento da natureza; foi vítima de um capitalismo que não leva a nada. “E se os nossos pais tivessem errado?. E se fosse preciso voltar aos verdadeiros valores, à natureza?” A natureza é considerada um verdadeiro valor, a santa natureza, que não se engana nunca, sempre tem razão…Ou seja, exatamente o que dizia Rousseau. Houve uma crítica ao nosso modo de vida. Além disso, há outra razão para o retrocesso. A geração das filhas critica sempre a das mães. As mães eram feministas, queriam a igualdade. As filhas se disseram que não queriam ser iguais a essas mães, que levaram uma vida de cão, voltavam ao trabalho esgotadas etc. Achavam que elas pagaram pela independência da mãe. Ou seja: “Você não se consagrou o suficiente, não me deu tempo suficiente”. O contrário do que se passou com as mulheres da minha geração, que sobretudo não queriam ficar em casa.

Ou seja, é como a moda, vai e vem.
Exatamente como a moda. Acho que houve um acerto de contas das filhas com as mães, mesmo que não seja consciente. Portanto, há três razões para as mulheres da nova geração terem preferido ser mães formidáveis a trabalhar: uma razão econômica, uma razão filosófica e uma razão psicológica. Quero acrescentar, no entanto, que ter uma mãe 24 horas em casa é genial se a mãe ficar muito contente com isso – se ela for cheia de vida e gostar das tarefas domésticas. Do contrário…

Quais são os imperativos da ecologia pura e dura que devem ser recusados? A ecologia está muito na moda no Brasil.
Acho que é preciso recusar o ódio de tudo o que diz respeito à ciência. Estou pensando na desconfiança das mulheres em relação aos remédios, ao mundo hospitalar, à peridural. Tudo isso é demonizado pela ecologia pura e dura. Me horroriza a ideia de que é necessario ficar sem peridural e que dar a luz é um sofrimento maravihoso. Isso é masoquista! Percebo que muitas jovens se deixam convencer pela ideia de que, para ser uma boa mãe, é preciso ter sofrido, ter vivido no corpo a violência do parto. Uma aberração! Todas as pressões para as mulheres não irem ao hospital e darem à luz em casa me enfurecem. Vou dizer por quê. Há muitas mulheres no Terceiro Mundo, na África, por exemplo, que dão à luz sozinhas ou com as mulheres da vizinhança e os bebês morrem. Nós somos como crianças mimadas. Cuspimos sobre séculos de progresso que fizeram a condição feminina melhorar, que deram às mulheres mais satisfação pessoal e corporal.

Em O conflito, a mulher e a mãe, a senhora diz que desde o século XIX os modelos de mãe proliferam, quando não existe modelo possível, e sim casos diferentes e únicos. Poderia falar sobre isso?
A mãe ideal é tão rara quanto Mozart. Há mulheres com um dom particular – são muito raras –, que conseguem achar a boa distância entre elas e a criança e chegam a conciliar da melhor forma o seu desejo de mulher e a sua vida de mãe. Mas a verdade é que nós somos todas mães medianas, para não dizer medíocres. Todas querem fazer o que podem pelos seus filhos; porém, uma mulher é um ser humano com seus desejos pessoais, seu egoísmo, sua história e sua neurose. Não há como ser perfeito; a gente não entende tudo o que acontece na vida do filho. Há coisas que a gente não vê. Há circunstâncias em que decidimos fazer uma determinada coisa com o filho, achando que é boa. Depois de alguns anos, nos damos conta de que não era. A intenção era boa, mas a gente se enganou. É muito difícil criar uma criança.

Muito…
Nós somos todos limitados. Há muito coisa que a gente não vê, não enxerga.

Acho que podemos diminuir a quantidade de erros aprendendo a escutar.
Certamente.

Aprendendo a escutar em vez de ter uma ideia fixa sobre a educação…
O que você diz é verdade, mas, frequentemente, essa ideia fixa é inconsciente. Nós não percebemos nossas ideias fixas e limitações. Por outro lado, eu pertenço a uma geração de mães que escutaram seus filhos e toleraram muita coisa. Será que eles são mais felizes por isso? Não tenho certeza. O que faz uma criança ser feliz é misterioso. Equilibrar a autoridade, a escuta, as regras e a tolerância não é fácil. A gente sempre pende um pouco demais para um lado ou para outro.

Sobretudo porque ninguém ensina a ser a mãe do próprio filho.
Não, e a gente também é mãe em função da própria mãe. Adotamos o método da mãe – com todas as falhas – ou adotamos um contramodelo. Nos dois casos, dá na mesma… acabamos sendo mães medíocres. Acho que é diabólico dizer para as mulheres que nós podemos ser a mãe ideal, porque é uma fonte de culpabilidade, leva a perder a confiança em si própria. Diante da menor dificuldade, a mulher se pergunta: “O que foi que eu fiz?”. Acho necessário dizer que a gente faz o que pode, que nos confrontamos com dificuldades que não sabemos resolver e ponto final. O destino da humanidade é esse.

A senhora é mãe de três filhos. O que o papel de mãe lhe ensinou?
O papel de mãe me ensinou que eu não dominava tudo, que havia muita coisa que eu não entendia. Muito tempo depois, me dei conta dos meus erros. Só podemos dizer se a mãe é aceitável ou não quando as crianças são adultas. Aceitável quando o filho tem o desejo de encontrá-la, tem prazer nisso. Não é aceitável quando ele só faz isso por obrigação. Muitos de nós temos uma relação com os pais de puro dever. “Preciso ir lá ver meu pai, minha mãe.”

Seus filhos leram seus livros?
Não leram todos, e eu não tenho certeza de que eles tenham lido o primeiro, O mito do amor materno, porque era um livro traumatizante para eles. Na escola, os outros diziam: “Tua mãe não te ama, porque ela diz que não tem amor materno”. Eu nunca disse que não há amor materno; eu disse que não há instinto materno, que isso não é automático. Para mim, o amor é um sentimento que se tricota no dia a dia.

Todo e qualquer amor se tricota.
Todo… e eu não perguntei aos meus filhos se eles leram o livro.

Recentemente, na França, uma parte da população se opôs à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por casais homossexuais. A senhora participou do debate defendendo o direito à homoparentalidade. Como foi?
Passei anos pensando no assunto, me perguntando se eu era a favor ou contra. A inexistência de um modelo natural perfeito me parece decisiva. Por outro lado, ao longo dos séculos, houve tantos fracassos nas famílias, tantos dramas! Como explicar que, na França, 40 por cento dos pais que se separaram das mães só vejam os filhos uma vez por mês? Que pais ausentes são esses? E pode-se dizer o mesmo das mães. O número de mães que sabotam os filhos por causa da sua neurose… Quando trabalhei numa comissão da Assembleia Nacional, me dei conta de que há mulheres completamente desequilibradas, drogadas e ninguém as impede de ter filho. A gente sabe que os filhos de certas mulheres vão ter uma vida horrível, mas ninguém diz nada, “porque a natureza quer assim”. Como a natureza produziu muitos dramas, muitos fracassos, acho que a família heterossexual não pode dar lição alguma.

Um problema sério que existe no Brasil é a interdição do aborto. Mulheres que não têm condição alguma de ser mães dão à luz repetidamente. Ou recorrem a métodos bárbaros para abortar. Como sou médica, fiz mais de um aborto em mulheres que entravam no pronto-socorro já com septicemia. E a curetagem era feita sem anestesia. Um dos meus colegas dizia mesmo que não devíamos anestesiar as mulheres, para que elas aprendessem a não engravidar.
Horrível.

Isso tudo com a bênção do papa…
Pois é…. Acho que há ainda uma intolerância muito grande em relação à homossexualidade. Na França, nós fizemos o Pacs (Pacto Civil de Solidariedade). É possível que as pessoas contrárias ao casamento entre homossexuais temessem que, depois do casamento, viesse a filiação. Só que as crianças educadas pelos casais homossexuais não são nem mais felizes e nem mais infelizes do que as educadas por casais heterossexuais.

Sobretudo porque a função paterna pode ser exercida por uma mulher e vice-versa.
Com certeza.

O que importa é a função paterna, a função materna. Do ponto de vista da psicanálise, não há por que se opor ao casamento homossexual.
Françoise Dolto observou que não há mais crianças perturbadas entre os filhos de homossexuais do que entre os filhos de heterossexuais. Há 30 anos que os americanos observam isso. Fizeram muitos estudos com crianças de homossexuais e de heterossexuais e não verificaram nenhuma diferença essencial. O problema é que, no fundo, nós pensamos que a função paterna e a função materna devem ser encarnadas por um homem e por uma mulher. Me parece que estamos enganados.

A senhora é feminista, mas se opôs a uma lei que visava instaurar a paridade homens-mulheres na representação política. Num ensaio de 2003, Fausse route (“Caminho errado”), a senhora fez um balanço extremamamente crítico do feminismo nos últimos trinta anos. Gostaria de ouví-la falar sobre isso.
Fui hostil à lei da paridade porque, com isso, mudamos a Constituição francesa e reintroduzimos nela o biológico. Sou uma das mil filhas da Simone de Beauvoir e considero a reintegração da biologia na Constituição para dizer que as mulheres na política não são a mesma coisa uma aberração. Acho que, quando fazemos política, o sexo não existe.

O que conta é o argumento.
Sim, e eu prefiro mil vezes votar num homem que tem as mesmas ideias a votar numa mulher cujas ideias são contrárias. O sexo não tem nada a ver. A competência é essencial. Quando a competência é igual, devemos escolher uma mulher. Mas não acredito que as mulheres sejam diferentes dos homens. Acabamos de ter eleições na França e vimos as mulheres se oporem entre si. A ideia de que as mulheres são mais atentas para os outros, mais pacíficas, não se sustenta.

O que a senhora pensa do feminismo americano, do Silicon Valley, representado sobretudo pelas diretoras do Facebook e do Yahoo? Segundo elas, o mundo continua sendo dominado pelos homens, porque as mulheres, pela sua educação, duvidam das próprias capacidades e não têm ambição.
Não estão enganadas. Há um peso milenar sobre as mulheres, que pedem mais dificilmente aumento para os patrões, discutem menos com a autoridade masculina. Isso vai evoluir.

Qual deve ser hoje o papel do feminismo?
Acho que devemos sustentar tudo o que leva à igualdade dos sexos. Para mim, o feminismo é isso. Estou em total desacordo do feminismo que se exprime hoje na Europa. Trata-se de um feminismo em que a mulher é considerada uma heroína, porque é uma vítima dos homens. Com isso eu não concordo. A insistência na mulher vítima é um desastre quando queremos seguir pelo caminho da igualdade. Quando consideramos o 8 de março, por exemplo… Se eu fosse uma menina de 10 anos que visse na televisão todos os horrores que acontecem com as mulheres – não são pagas como os homens, fazem 80 por cento do trabalho doméstico, são potencialmnte violáveis, morrem apanhando dos companheiros, ou seja, são vítimas – eu não gostaria de ver o programa. Em vez de um feminismo que induz as mulheres à conquista, vemos um feminismo que as expõe como vítimas. Exatamente o contrário do que deve ser feito. Necessário dizer às mulheres: “O mundo é seu. Vá em frente”.

Foi o que o seu pai disse, não é?
Sim, foi, e eu achei que foi muito estimulante. Agora, com a nova lei que pretende punir os clientes das prostitutas, eles estão começando a difundir a ideia de que os homens são uma ameaça para as mulheres, uns canalhas. Dizem que duas mulheres por semana morrem apanhando, mas esquecem de dizer que há um homem a cada duas semanas que morre pela mesma razão. Se quisermos um mundo de igualdade, não devemos fabricar um mundo de oposição e de desconfiança. Importante denunciar a violência; porém, não devemos dar a entender que a essência do masculino está na violência. O feminismo que vitimiza e que é a voz principal do feminismo hoje não me interessa. Acho que é muito contraprodutivo.

Obrigada