Um livro sobre a mãe de todos nós
Teolinda Gersão Moreno
UM ROMANCE VIVIDO
A mãe eterna aborda um tema profundamente actual:
Todos nós passamos por nascimento, crescimento, descoberta da sexualidade, vivência da sexualidade e morte. No fundo, a vida resume-se a pouco. Mas cada um vive a seu modo esses arquétipos da criança, da mãe, do pai, do sexo. Betty Milan escreveu um livro lindíssimo, com forte componente biográfica, em que não teria provavelmente ido tão longe se não fosse também psicanalista. Mas, apesar da sua vertente de psicologia e de análise, o livro é um romance, portanto uma narrativa ficcionada.
É interessante verificar que as únicas personagens a quem é dado nome próprio são personagens secundárias. As centrais, a filha- narradora, o eu narrador, não tem nome, e também a mãe não tem nome.
O romance constrói-se em forma de diálogo, ou antes, de um monólogo, em que a filha imagina as respostas da mãe. Imagina-as, porque a mãe é a cada momento reinventada. Não é aos encontros reais entre mãe e filha que assistimos, porque a mãe já ultrapassou a fase da lucidez e sai facilmente da realidade, por vezes nem mesmo reconhece a filha.
A sua figura é criada a partir do que é, mas em muito maior grau a partir do que foi, uma mulher sempre atenta e presente, afectuosa e generosa, de personalidade forte, que, até ao fim, manteve o seu desejo de independência, nunca aceitando abdicar da sua assertividade e do seu modo de ser.
SOBRE A MÃE UNIVERSAL
Saliento também que Betty não quis escrever como outros autores, nomeadamente alguns grandes nomes da cultura e da literatura em língua francesa, que escreveram sobre as suas mães. Pensamos por exemplo num Georges Simenon, que escreveu Lettre à ma mère depois da morte desta. Ou em Simone de Beauvoir, que escreveu sobre a partida de sua mãe, contra a qual na vida tanto se rebelou, Une mort très douce: um livro muito mais conciliador e muito mais terno do que La Cérémonie des adieux, em que mais tarde relataria a morte de Sartre, que, no consenso geral, terá sido o grande amor da sua vida.
Por seu lado Collete Fellous, francesa de origem marroquina, escreveu o lindíssimo Rosa Gallica sobre a decadência de sua mãe: forçada pelas circunstâncias, a filha-narradora acaba por interná-la num lar, onde a visita e acompanha até ao fim. E termina dizendo: “Eu inventá-la-ei para sempre”. Recusa, portanto, ver a mãe partir…
Outro exemplo que podemos mencionar é Le Livre de ma mère, de Albert Cohen, provavelmente o mais belo dos que citei.
Contrariamente a estes casos, o livro de Betty Milan tem a ver com sua vivência biográfica, mas não é um livro sobre a sua mãe: na minha perspectiva, é também sobre todas as mães.O próprio facto de a mãe não ter nome me parece apontar nesse sentido universal.
FILHA: MÃE DA MÃE
Este não é no entanto um livro fácil de ler, porque Betty vai muito longe na relação cheia de ambiguidades que se estabelece entre a filha e a mãe envelhecida. A cronologia, aqui, não obedece à lógica temporal.
O facto de vivermos mais tempo, e de as filhas frequentemente assumirem o papel de mães da própria mãe, é um tema incontornável da nossa época. Esse papel não é natural, e não pode ser cumprido sem dor nem sentimentos contraditórios.
De facto, não é raro os idosos tornarem-se intransigentes e quererem que as coisas se mantenham como sempre foram, sem mudanças nem alterações. Querem viver num tempo que já não existe – e que neste livro a filha só consegue reencontrar através dos álbuns de fotografias.
No presente, a filha-narradora divide-se em duas, como o romance também refere. É “aquela que só diz o que tu queres ouvir” e a outra, a que se revolta: “Agora, estou num impasse, porque tu precisas de mim, e eu não te quero abandonar, porque gosto muito de ti, porque te devo a vida e todo o carinho, etc . Mas, por outro lado, eu vou deixar de viver se for cuidar de ti. E o que estás pedir-me é algo impossível, é que eu renuncie a mim própria”.
O IMPASSE
Isso porque, nesse momento, as filhas mulheres já passaram a vida inteira a cuidar das crianças, dos mais velhos, da casa, da família, da sua vida profissional, e de tudo o mais. E justamente agora, quando têm ( ou teriam…) um bocadinho de tempo para si próprias, sem os outros estarem à espera delas, têm novamente de se dividir e de se multiplicar. De repente, a nossa liberdade é limitada por outra pessoa, e isso cria uma enorme sensação de revolta. Queiramos ou não, é humano. Não podemos aceitar ficar ali, porque, se ficamos, não vivemos. Mas abandonar a mãe, não ir vê-la nunca, ou apenas raramente, é uma ideia que nos deprime e rejeitamos .
Claro que existe a possibilidade de arranjar cuidadores, mas isso muitas mães e filhas recusam, porque são péssimos, caros, porque fazem apenas os serviços mínimos, os seus cuidados deixam muito a desejar, ou por muitas outras razões, todas elas válidas.
A sociedade tem que evoluír, dar uma resposta a isso, porque não se pode exigir que sejamos mães das mães. Os filhos homens, como o deste livro, vão à sua vida e não se sentem obrigados a nada. Mas as filhas, sim. E não é justo, nem é humano que a filha deixe de ser ela própria e seja outra vez sacrificada.
Essa ideia da mulher que nasceu para se sacrificar pelos outros está ultrapassada. Não aceitamos esse papel. Claro que não recusamos a feminilidade, com tudo o que ela implica, mas sem os abdicar dos nossos direitos de existir plenamente, como seres inteiros e autónomos.
Betty encara sem subterfúgios o imenso amor, mas também a tensão, e por vezes a situação de luta entre mães e filhas. Sem se darem conta, as mães podem tornar-se imensamente autoritárias, e imensamente egoístas.
Como a narradora legitimamente sente, “não sou monge nem padre”. E acrescenta: “A vida será mais fácil depois de não estares aqui. Dizer que quero a tua morte, mas não a desejo”.
A ambiguidade é portanto enorme. Eu quero a tua morte, mas não me atrevo a desejá-la. Seria melhor para as duas. Se calhar, sim, seria bem melhor, pensam ambas, mãe e filha – sobretudo se a situação se arrastar por muitos anos. Porque essa é provavelmente a relação mais dura numa vida. Uma criança exige igualmente uma entrega enorme, mas é uma relação gratificante e alegre: a criança cresce, vamos seguindo para um objectivo positivo e ascendente. Mas, aqui, estamos numa caminhada negativa, descendente, dolorosa para ambas as partes.
A eutanásia, muitas vezes mencionada no livro, pode ajudar nessa situação ? Por vezes a resposta do livro parece ser afirmativa, quando a mãe exprime o desejo intenso de morrer. “Se é isso que queres…” Mas qual é a filha que tem a coragem ou a capacidade de ajudar a mãe a dar esse passo? Nenhuma ou quase nenhuma. Porque a mãe do livro, que diz “quero morrer”, logo em seguida pede “marque-me a consulta para amanhã”. Claro que não quer morrer – até porque a morte é assustadora, e, quanto mais nos aproximamos dela, mais assustadora ela se torna.
O livro não esconde esses instantes de revolta, mas o que há nele de mais forte é um imenso amor, uma imensa ternura, uma imensa gratidão, uma imensa identificação da filha com a mãe.Termino citando estas linhas belíssimas:
‘’Ainda não sabia que, sem que me esforçasse, tu renascerias em meu coração e nós continuaríamos juntas”.
Teolinda Gersão estudou nas Universidades de Coimbra, Tübingen e Berlim, foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim e professora da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionou Literatura Alemã e Literatura Comparada.
Viveu três anos na Alemanha, dois no Brasil, e algum tempo em Moçambique, onde decorre o romance A árvore das palavras.
Recebeu numerosos prémios literários, desde o Prémio de Romance do Pen Club em 1981 ao Prémio Vergílio Ferreira em 2017.
Em 2004 foi escritora residente na Universidade de Berkeley.
Alguns dos seus livros têm sido adaptados ao cinema e teatro e encenados em Portugal, Alemanha e Roménia.
Está publicada em 14 países, e na sua numerosa bibliografia destacam-se traduções de obras suas e estudos sobre os seus livros na Inglaterra, Estados Unidos e Brasil.
Mais informações no site: www.teolindagersao.com
NOTA: O presente texto foi baseado na comunicação oral de Teolinda no lançamento em Lisboa de “A Mãe Eterna” de Betty Milan. Respeitou-se a grafia de Teolinda, que não segue o Acordo Ortográfico de 1990. O título do texto, bem como os títulos das várias partes aqui referidas, são da responsabilidade de Betty Milan, com a inteira concordância de Teolinda.