Tóquio cidade maravilha

Tóquio cidade maravilha

Este texto apareceu como
«Tóquio, a megalópole zen: os contrastes da capital japonesa em uma viagem inesquecível ».
Revista Claudia, 19/03/2013

Do Japão eu pouco sabia. O meu Japão era o dos descendentes do Kasato-Maru, o navio  que saiu de Kobe e entrou no porto de Santos em 1908, depois de 52 dias de viagem, com 181 imigrantes. A maioria camponeses, mas também havia comerciantes, samurais e intelectuais. Deixaram o país natal, fascinados pela aventura, e vieram  comer o pão que o diabo amassou tanto nas fazendas quanto no comércio.

Durante a Segunda Guerra Mundial, suas associações foram proscritas. Temendo que eles quisessem  fazer no Brasil o Império do Sol Poente, o governo brasileiro  mandou fechar escolas e queimar livros escritos em japonês. Depois, quando o Japão perdeu a guerra, os imigrantes se dividiram entre os que não acreditavam na derrota e os outros, que acreditavam, e as facções se digladiaram até morrer. Foram vítimas de um nacionalismo desvairado.

O meu Japão se limitava à simpatia pelos conhecidos japoneses e à antipatia que o nacionalismo me inspira. Talvez por isso, nunca tenha me ocorrido ir ao Japão. Depois, aconteceu  a catásfrofe do tsunami, e a reação do povo surpreendeu o mundo. Apesar da tragédia, não houve cenas de tumulto ou saque, a disciplina imperou nos abrigos improvisados e nas filas dos telefones públicos. Foi uma lição de civilidade, e a palavra Japão adquiriu um significado novo.

Queria  ir para lá, mas hesitava. Tão longe, costumes tão diferentes, mulheres tão servis! Vi mais de um filme em que a esposa ajoelha quando o marido chega, depois  de ter dito: “– Você chegou”. Bendiz a chegada incondicionalmente.

Sabia que o servilismo não diz mais respeito a toda a sociedade japonesa; porém, também sabia que as mulheres continuam a ser vítimas da divisão sexual na qual a sociedade está fundada. Uma divisão que destina o sexo masculino à empresa e o feminino à casa, que a japonesa deve privilegiar independentemente do seu desempenho profissional. Com um diploma na mão, ela pode trabalhar, mas a tradição a incita a deixar o trabalho depois da primeira criança, e a empresa se beneficia da tradição para despedi-la.

Poucos dias antes de tomar o avião, eu ainda me perguntava por que ir. A ignorância da língua parecia uma barreira insuperável. Podiam as pessoas dizer que “no Japão, todo mundo fala inglês”; eu sentia medo de me perder no labirinto das ruas de Tóquio. Apesar dos tantos livros que, nessa altura, eu havia lido e dos autores que descobri, a ida parecia uma temeridade.

De Paris a Tóquio são doze horas. Bela surpresa na chegada em Narita, o aeroporto. Entrego o passaporte ao agente de segurança e a frase Olhe aqui começa a clicar na tela de uma câmera fotográfica. Sou recebida na minha língua e me surpreendo agradavelmente. Depois, percebo que é assim pois, no Japão, a eficácia é fundamental, e os japoneses sabem o quanto ela depende da relação entre as pessoas.

E agora? Como chegar no trem expresso que leva do aeroporto ao centro? Pela sinalização, que está em duas línguas: japonês e inglês. Mas também pelos funcionários do metrô, que se esforçam para orientar o turista. Não falam bem o inglês, porém o empenho é tal que eu sempre cheguei onde queria chegar.

No trem expresso, outra surpresa. Um quase completo silêncio durante uma hora. Todo mundo consultando o celular, mas este não toca e ninguém se autoriza a ligar. Respeitar o direito ao silêncio é dever de todos. Ja aí teria sido possível deduzir que, no Japão, os interesses pessoais não se sobrepõem aos  da coletividade.

Duas horas após o desembarque, estou no trigésimo andar do hotel, que fica ao lado da estação. Abro a cortina e vejo Tóquio como quem enxerga a lua. Miríades de luzes azuladas numa extensão infinita e o reflexo dos carros se deslocando suavemente no vidro das janelas. Aqui e ali, no topo  dos edifícios, um farol vermelho para nortear os aviões que sobrevoam a cidade. Alguns luminosos gigantes com ideogramas me dizem que eu estou na Ásia. Você chegou, menina! Agora, olha.

Seguem-se as visitas aos pontos turísticos, para os quais sempre vou de metrô. No parque de Ueno, adorado pelos moradores, além do Museu Nacional de Tóquio, com grandes obras do patrimônio cultural, há um pequeno museu comovente, Shitamachi Fuzoko Shiroyokan, que reconstitui uma rua da cidade baixa, incendidada durante o terremoto de 1923. “– Faltavam dois minutos para o meio-dia”, me diz uma funcionária do museu. Fala como se tivesse vivido o horror. Inglês precário; porém, ela faz questão de me acompanhar, explicando como era, na época, a vida na cidade. Com isso, me transmite o essencial – o seu  amor pelo Japão, que se expressa através do desejo  de despertar meu interesse pelo país.

Como ela, encontrei várias pessoas – na qualidade de porteiro, recepcionista, arrumadeira, garçom, taxista, vendedor –, todas dedicadas ao seu trabalho e prestativas. Nunca deparei com má vontade e constatei inclusive que a dificuldade para responder a uma pergunta minha provocava mal-estar. Nessa situação, a pessoa procurava outra que pudesse prestar o serviço. Deixava-se ajudar, exercitando-se na humildade, que, no Japão, é um valor.

Entre os pontos turísticos, Meiji Jingu me impressionou tanto pela beleza do santuário xintotísta, construído em 1920 e dedicado ao imperador Meiji, quanto pela floresta a sua volta, onde eu primeiro vi as árvores de galhos retorcidos e as carpas coloridas… vermelha, laranja, amarela. Ótimo lugar para abrir o rolinho de papel verde, adquirido no templo, e ler o poema do imperador: Tão claro e refrescante/ Quanto o sol nascente/ Deve o coração humano/ Sempre ser!

Saí da floresta disposta a me refrescar ainda mais. Por que não ir ao jardim mais antigo da cidade, Koishikawa Korakuen, datado do século XVII? Descobri ali o jardim japonês destinado ao passeio, que tem a particularidade de surpreender continuamente quem anda. Alguns passos e a paisagem é outra. Muda a paisagem como a imagem no caleidoscópio.

Além das belezas dos pontos históricos, a cidade oferece as da modernidade. Depois de ter sido praticadamente destruída pelo terremoto de 1923, foi bombardeada durante a Segunda Guerra e reconstruída durante os anos 1950 e 1960 para se tornar o microcosmo das diferentes correntes da arquitetura mundial sem perder a especificidade da arquitetura japonesa tradicional.

Perto do meu hotel, ficava o Fórum Internacional de Tóquio, construído por Rafael Viñoly nos anos 1990. Imenso volume de vidro evocando uma folha no ar, e o teto como a carena de um navio. Impressionante também a prefeitura da cidade, em Shinjuky, obra de Kenzo Tange, que se inspirou  em Notre-Dame de Paris. Tóquio, aliás, faz continuamente menção a Paris, e uma das suas torres é idêntica à Torre Eiffel.

Ao contrário das outras megalópoles, a cidade é silenciosa e quase não tem poluição. O tráfego não é pesado e não é ameaçador. Quem anda não se sente esmagado pelos prédios, porque, entre um e outro, há espaço; as avenidas são largas e as calçadas, também. Ademais, há sempre uma árvore ou um canteiro de flores. Atravessei despreocupadamente a cidade mais de uma vez. À noite, ouvindo o canto do grilo e olhando a lua cheia, como querem os japoneses, que, além do nosso calendário, têm um calendário lunar.

Em nenhum outro lugar a vida coletiva é tão bem organizada. Tudo funciona e tudo é previsto. Nas estações de metrô, há sempre uma cadeira de rodas para o inválido. A porta do ônibus, por onde as pessoas entram, só se abre quando os que deviam sair já o fizeram. Nas ruas, há um lugar especial para o cego atravessar e uma sinalização sonora indicando quando ele deve passar. Em todos os lugares públicos, há banheiros impecavelmente limpos, com um bidê integrado na privada.

A relação entre as pessoas é moldada pela delicadeza. Onde quer que entre, você é saudado. Ninguém se exalta e ninguém barra o seu caminho sem logo pedir desculpas. Vi muitas pessoas com máscara na rua e fiquei sabendo que há duas razões para isso. Ou a pessoa é alergica ou evita contaminar os outros.

Como explicar este  país que, de tão civilizado, mais parece irreal? Pela consciência da efemeridade da vida, graças à religião xintoísta, que ensina a amar e observar os ciclos da natureza? Pelos ensinamentos do budismo, que prega a doçura, a mansidão e a generosidade? Seja qual for a resposta, eu nunca me esquecerei do Japão por ter vivido uma experiência única de respeito ao próximo e ter assim superado as minhas reticências. Uma experiência encorajadora,  absolutamente vital.