ME CHAMA DE
MEU AMOR
E EU ESTAREI
REBATIZADO
Teatro Lírico
trecho
Teatro Dramático
Fragmento de BRASILEIRA DE PARIS
Na sala de Doroteia.
FLOR — “Onde foi que você comprou o body?” Na Galeries, claro. Adoro a Galeries. (Passa a mão no zíper que vai do meio dos seios ao meio das pernas e aí para e olha para a mão) “E isso aí…? Isso o que é?” Você não sabe? Pensei que soubesse! Só o que faltava agora era eu ensinar o padre-nosso ao vigário, ensinar as coisas da França para um francês. Aí ele: “Me ensina a França, meu bem, ensina que eu gosto”. (Flor passa a mão no flanco, excitada) Depois, Mon Chéri quis saber quem me deu o meu nome. Papai, ora. Não vivia sem flores. Daí ele: “A flor que eu prefiro é você. Quero sentir o seu perfume. Vem”. Me fiz de gostosa. Não, ainda não. “Então, dança com esse body para eu ver”. (Flor dança a mesma música que havia dançado anteriormente, Chameguinho, cantada por Elba Ramalho) Quis saber o que significa a palavra quente. Será que ele não sabia? Quente, meu bem, é o café com leite, o queijo dentro do pão. Quando a gente se mistura é quente. Tudo o que faz o coração bater é quente. Daí ele, enlouquecido: “E xodó o que é?” Amor, paixão, quem a gente deseja beijar. “Então, vem, meu xodó.” Só se você disser que me ama. “ Je t’aime.” Só isso? “Não basta?” Diz mais, diz. “Quando a gente ama, adiar é um crime. Por que adiar o momento nobre de viver o amor?” Daí, eu: “Mas, para viver o momento nobre do amor, que palavras você diz?” “As palavras todas. Eu te amo, eu sufoco, estou louco, não posso mais… De você eu amo tudo. O cabelo, a testa, os olhos, o nariz, a boca… e o corpo, Deus meu!” Nunca tinha ouvido isso tudo. Que chamego! Lá em Fortaleza, é só vem cá. Que mulher resiste a um francês? Vem cá, meu xodó.
Doroteia entra na sala quando Flor diz a última frase.
DOROTEIA — Pelo visto, hoje você não trabalha, já chegou cansada…
FLOR — Cansada? Cheguei morta. A noite inteira com Mon Chéri e olha que ele dá no couro! Dá de dez em qualquer menino de dezoito anos.
DOROTEIA — Quantos anos ele tem?
FLOR — Sessenta.
DOROTEIA — E onde é que vocês se encontram?
FLOR — No Hotel des Mauvais Garçons.
DOROTEIA — O quê? No Hotel des Mauvais Garçons? (Solilóquio) O hotel onde eu vou com Fio.
FLOR — Acho que é Mauvais. Quem escolhe é ele e quem paga é ele, claro.
DOROTEIA — Em que quarto você ficou?
FLOR — Não sei, mas já fiquei em todos. Ontem, foi só o Manoel sair e eu me mandei pra lá. Ele saiu depois de ter arrancado todas as tomadas do computador. “Tu queres ficar nua na internet, não é? Tu és uma puta, mulher!” Ai, que ódio!
DOROTEIA — Ele arrancou de novo as tomadas?
FLOR — Pois é, dizendo que era para eu não me mostrar mais. Ele só usa a internet para ver mulheres nuas e depois imagina que eu também gosto de me exibir.
DOROTEIA — Gosta um pouco, não é?
FLOR — Só para Mon Chéri, que me deu um penhoar transparente. “Para você usar sem camisola e sem calcinha”, ele me disse. Pus o penhoar, abri e fiquei olhando ele me olhar. Só com isso eu peguei fogo e, vupt, ele veio, entrou. Perdi a conta do tempo que ele ficou, estalando de gostoso. Mon Chéri tem quase 60 anos, mas ele é bom demais.
DOROTEIA — Só você mesmo, Flor… E você viu a lista das coisas que eu deixei para você fazer?
FLOR — Que lista?
DOROTEIA — A que está na sua frente. Ou será que você não enxerga? Não, não enxerga. Não põe óculos por mais que eu fale. E mesmo que pusesse óculos, não enxergaria. Porque você só tem olhos para ver e rever as cenas do Hotel des Mauvais Garçons. Você sai do hotel e continua lá. (Rindo, porque Doroteia também está pensando nas cenas do Hotel des Mauvais Garçons, onde ela se encontra com Fio)
FLOR — E, se não fosse o amor, a vida valia, Dona Doroteia? Sem o amor, o coração não bate. O que Mon Chéri quiser, eu faço. De costas, eu viro. De pé? Por que não? Encostada na parede com uma perna no chão e a outra para cima. Na beira da cama…
DOROTEIA — Chega, Flor.
FLOR — Tudo pela delícia daquele beijo. O resto é o resto.
DOROTEIA — OK. Mas e a lista?
FLOR — Que lista?
DOROTEIA — A lista de coisas por fazer. Vamos olhar isso logo. Se não, o François, que não suporta sujeira, briga.
FLOR (Solilóquio) — Ele briga porque ele está mal comido.
DOROTEIA — Anda, Flor.
FLOR (Pega a lista) — Isso aqui é o quê? (Pergunta apontando um item da lista) Lavar a má-qui-na de la-var rou-pa. Não entendo…
DOROTEIA — Claro, a máquina lava a roupa. Alguém tem que lavar a máquina, senão, ela não lava mais a roupa direito.
FLOR — E o alguém sou eu! Era só o que faltava. E qual o produto que eu devo usar para isso?
DOROTEIA — Qualquer sabão serve, desde que você esfregue um pouco. Qualquer Gel Vaisselle desengordura e não estraga as mãos.
Teatro Lírico
Fragmento de PAIXÃO DE LIA
LIA — Mesmo nos dias de quarto minguante, com Ali eu verei a lua cheia e ele estará de smoking sempre, ainda que esteja vestido com simplicidade. Como poderia a noite em que o meu homem chega não ser de gala? Como poderia não estar eu de longo esvoaçante? De arminho nos ombros ou com um rabo de sereia? Champanhe da sua boca para a minha.
A VOZ — Champanhe (A Voz levanta, abre a champanhe que está em cima da mesa, despeja um pouco num copo, bebe um gole e beija Lia na boca)
LIA — Champanhe e a língua abrupta com que ele me fará fechar os olhos, me deixará sem nenhuma palavra que não seja Ali. Ficar enfim sem palavras e bendizer calada o fato de nada poder dizer. Ouvidos eu então só terei para o silêncio e para “My Man” na voz mareada de Billie Holiday.
A VOZ — My Man.
LIA — Que Ali me beije os lábios, me envolva e escorregue com a língua até a garganta. Que ele me satisfaça a primeira gula. Ponto, parada.
Meia dose de conhaque Lia quererá? Licor de maracujá ou creme de menta? Seguir no ritmo dele, passo a passo, entre azaleias. Colher uma e, com a pétala, acariciar a sua face. Ficará querendo comigo se ausentar. Não iremos a Roma ou a Paris, pois no Tibre ou no Sena não há nenhuma ilha onde possamos estar inteiramente sós. Queremos dunas tropicais para que a nossa hora seja só nossa.
A VOZ — Só nossa.
LIA — Um lugar onde o céu aparecerá através da copa de um buriti e o silêncio será para ouvir as ondas do mar, esquecer que o nosso tempo é o tempo dos mortais.
Música.
LIA — Me beije, me envolva e se afaste para, olhando, me apalpar o seio da direita, beber depois o mel no seio esquerdo, o do coração. Me prenda o mamilo entre os dentes, deixando que eu, entreaberta, acaricie com a alamanda o meu botão.
A Voz entra silenciosamente em cena, entrega uma flor para Lia.
A VOZ — A alamanda, a flor…
LIA (Pega a flor e se roça com ela) — Deslembrada do que não sejamos eu e ele, entregue à boca dele e ao meu roçar, desejando que ele adie o gozo e se satisfaça com o adiar. Mel de acácia no rego dos seios e nas pétalas da rosa entreaberta. (Lia tira, uma a uma, as pétalas da flor) Perfumar assim a língua dele, prometendo ser flor de laranjeira depois. Ser todo dia outra e com isso escapar ao tempo. Lia, Lúcia ou Lia Lúcia para beber na Fonte de Juventa. Apegada ao que sou, eu logo morreria. (Lia se levanta abruptamente) Um dia, o vestido colante, negro. Noutro, de branco transparente. Às vezes, de cabeleira solta, auréola de cachos. Outras, de peruca ruiva, um anjo impre- visível, do bem e do mal.
A VOZ — Um anjo do bem e do mal.
Música.
LIA (Senta-se no divã) — O só dedo nos meios e ele me abrirá a porta do paraíso. Lover man. O torno contínuo e nós sobrevoaremos o areal ao som de uma música nunca ouvida. “Lia”, ele me diz, e me beija com a boca umedecida na rosa. O sumo que ele me oferece é o das entranhas. Bebe, mulher, as cores do arco-íris e vem comigo ver o Hudson, atravessar o Central Park. Ajoelhar no pequeno parque que o grande abriga, Strawberry Fields, onde Yoko Ono perambula invisível à procura de Lennon, a do cabelo negro cobrindo a nudez, dos olhos vidrados de paixão e das mãos para o céu.
resumo
Teatro Lírico e Teatro Dramático, reúne as seis peças da autora paulista, incluindo a inédita Dora não pode morrer.
O Teatro Lírico de Betty Milan deslanchou em 1994 com Paixão , escrita para a atriz Nathalia Timberg e encenada em vários estados do Brasil afim de celebrar o amor. A esta peça, seguiram-se dois outros textos também de caráter lírico: Paixão de Lia (1994) e O amante brasileiro (2003), a pedido de atores do Teatro Oficina.
Em seu teatro dramático encontram-se três peças : Brasileira de Paris (2005) que é uma sátira da libertinagem e do machismo. Tanto recusa a ideologia do libertino, que é contrária ao amor, quanto a ideologia machista, que desautoriza o desejo feminino.
Adeus Doutor (2008) diz respeito a uma ocidental descendente de orientais que, por não se identificar com as ancestrais, não pode ser mãe. A heroína supera a impossibilidade graças a uma análise, que revela as razões inconscientes do seu drama.
Na mesma trilha de Adeus Doutor, Betty Milan apresenta Dora não pode morrer, sobre o câncer e a loucura, na qual revela a importância da história subjetiva do doente para a cura.
leitura dramática
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histórico
Editado em 2015, pela Giostri editora, Teatro Dramático e Lírico foi lançado no mês de março em São Paulo, na Casa das Rosas.
No lançamento os convidados assistiram a leitura dramática de trechos de obras que compõem o livro, como Paixão, Paixão de Lia, O Amante Brasileiro e Brasileira de Paris. A apresentação contou com a participaçao de Barbara Riethe, Fabio Carrilho, Julia Moretti e Miguel Prata, do Vozes, e da autora Betty Milan (fotos).
opinião
A narrativa é pulsão humana. O ato de narrar supre demanda fundamental de ouvintes, leitores e miradores. Imaginar histórias é tão vital para a sobrevivência quanto respirar. O narrar pode assumir distintos modos e estratégias. No limite, é direto – personagem encarnado por ator – ou é mediado por narrador, que conta de si e de outros. Entre estes extremos, demarcam-se combinações possíveis dos gêneros dramático, lírico e épico. Betty Milan trabalha em todos esses registros. Como escritora, começou com os romances, cruzando experiências vividas com relatos de viventes. Desdobrou-se depois em poeta lírica e poeta dramática. É essa produção, o seu “teatro”, que o leitor encontrará aqui. Nela a autora mobiliza drama e poesia para encenar sua própria voz. Uma que se diz clara e precisa, variante, mas sempre mediada pela escuta da psicanálise e intensificada por um olhar apaixonado. O amor, a liberdade e outros temas e tratos humanos são expostos de uma perspectiva singular.
Luiz Fernando Ramos
área de interesse
Teatro, Psicanálise.
fortuna crítica
Livro reúne a produção teatral da psicanalista Betty Milan
Simone Costa
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