Tahar Ben Jelloun: A corrupção

Tahar Ben Jelloun: A corrupção

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Publicado sob o título “O país da corrupção”,
Jornal do Brasil
, Rio de Janeiro, 5/08/1990

Romancista e poeta marroquino de expressão francesa, Tahar Ben Jelloun nasceu em Fez, em 1944. Estudou filosofia e sociologia e foi professor secundarista em seu país até 1971, quando o ensino de filosofia se tornou arabisante. De formação francófona, Ben Jalloun se mudou para a França, decidido a fazer doutorado em psicologia, e começou a colaborar com o jornal Le Monde. Em 1987, obteve o prestigioso Prêmio Goncourt pelo romance La nuit sacré (“A noite sagrada”) e, em 1994, o Grande Prêmio Literário do Magreb pelo conjunto da obra. Seu romance O último amigo foi traduzido no Brasil. Em fevereiro de 2008, um mês após o lançamento do romance Sur ma mère (“Sobre minha mãe”), tornou-se Oficial da Legião de Honra da França.

L’homme rompu (“O homem rompido”) é o título do romance que Tahar Ben Jelloun publicou em 1994. Seu tema é a corrupção no Marrocos.

Murad, o personagem principal, vive em Casablanca. Não gosta dos muçulmanos e tampouco da sogra, que faz pouco dele por causa da pobreza. Trabalha no Ministério da Construção. Sua tarefa? Autorizar ou não a execução de projetos. Ao contrário dos colegas, que são todos corruptos, Murad teima em recusar o suborno, o chamado bakchich. Até que um dia, para pagar as dívidas, ele se deixa corromper. É essa descida aos infernos que Ben Jelloun conta no romance – retrato de uma sociedade em que a virtude não faz sentido diante de um punhado de dirhams.

Tahar Ben Jelloun mostra a lógica a que o indivíduo está sujeito num país corrupto e desmonta o mecanismo pelo qual o indivíduo, por mais moral, acaba cedendo. A história, que se passa no Marrocos, diz respeito aos outros países do Terceiro Mundo e por isso nos interessa particularmente.

Pela inteligência, O homem rompido faz pensar em Um dia na vida de Ivan Denníssovitch, de Soljenítsin, que evidencia a lógica a que está submetido o prisioneiro num campo de concentração.

Durante a entrevista que Ben Jelloun nos deu, no seu apartamento em Saint Germain des Près, certas respostas me colocaram interrogações que eu incluo no texto.

Betty Milan: Você afirma dever O homem rompido ao autor de Corrupção, o escritor indonésio Pramoedya Ananta Toer, que está em liberdade vigiada e proibido de publicar o que quer que seja. Qual a razão da dívida?
Tahar Ben Jelloun: Eu descobri o livro quanto estive na Indonésia. Lendo-o, me disse que era uma história que poderia ter acontecido no Marrocos, mas que a reação dos marroquinos seria diferente. Tentei encontrar Toer, mas me disseram que ele era muito controlado pela polícia e que, se recebesse um estrangeiro, poderia vir a ter problemas sérios. No avião, de volta para a França, me ocorreu escrever um romance que se passasse no Marrocos, inspirado na intriga do romance de Toer, porém com diferenças consideráveis. No meu livro, tudo se passa nos dias de hoje; no dele, as coisas se passam depois da independência da Indonésia, nos anos 1950. À medida que eu avançava na escrita, ia me separando do livro de Toer.

BM: Você diz que os personagens, no Marrocos, teriam reagido de maneira diferente. Quanto a quê, em particular?
BEN JELLOUN: Pensava sobretudo na esposa do personagem principal. No romance indonésio, ela controla o dinheiro da família e, quando o marido recebe o primeiro suborno, ela se dá conta e o expulsa de casa. No Marrocos, isso é impensável. A pequena burguesa quer tanto se parecer com a burguesa que força o marido a se corromper e o humilha todos os dias porque ele não consegue dinheiro.

BM: Quer dizer que a relação com a virtude é diferente.
BEN JELLOUN: Muito diferente. As mulheres marroquinas não têm a virtude da pobreza.

BM: A virtude da pobreza ou do respeito à lei?
BEN JELLOUN: Do respeito à lei… A corrupção se tornou tão generalizada, tão necessária na situação econômica de certas sociedades, que todo mundo a pratica. É como uma segunda natureza. Isso acontece na maioria dos países do Terceiro Mundo. O Estado não trata os funcionários corretamente, fecha os olhos e deixa as pessoas completarem os seus salários, servindo-se do bolso do cidadão. No mundo desenvolvido, a corrupção é uma atração pelo dinheiro fácil. Os países desenvolvidos, sejam eles os da Europa ou os Estados Unidos, são países gangrenados pela máfia, que é o sistema mais sofisticado, mais impiedoso da corrupção, do dinheiro sujo. A gente tem a impressão que de um lado estão os países pobres, que têm todos os defeitos, e do outro os países ricos, que vão muito bem obrigado. Os países ricos têm taras que estão à altura e na medida de sua riqueza. Num país rico, um homem não pode ser corrompido com cem francos, é preciso ter alguns milhões de francos. Nos países pobres, o suborno é quase uma esmola. O cidadão que vai buscar um documento é praticamente obrigado a dar um dinheirinho. Trata-se de uma forma de corrupção.

BM: Nós conhecemos isso no Brasil… Além de focalizar a corrupção na história de Murad, que não tem como resistir ao mal, você faz um retrato do Marrocos, cujos tipos vão se revelando à medida que o romance avança. Sua intenção era essa?
BEN JELLOUN: Em todo romance existe o projeto de fazer o retrato de uma sociedade. Um romancista tem um universo. Esse universo é composto de vários livros. Cada livro introduz uma parte do universo. Em Homem rompido, eu falo da corrupção. Em outro, eu falo da condição feminina; em mais outro, da história. Com tudo isso, a gente chega a ter uma ideia do que é o Marrocos hoje.

BM: Ao ler o seu livro, eu várias vezes me disse que a história se passava no Marrocos, porém também poderia ser uma história brasileira. Por exemplo, quando o narrador conta o caso de um médico que desviava para a sua clínica o material do Estado e, embora responsável por várias mortes, nunca tinha sido punido. Trata-se de uma história local e universal, que aproxima os escritores do Sul, como, aliás, você diz na introdução ao romance.
BEN JELLOUN: A história que eu conto é uma história verdadeira e é um fato que me revoltou realmente. Um industrial dar um envelope contendo dinheiro a um político que o ajudou a obter um negócio não é um ato que lesa diretamente o cidadão. Claro que não é bom. Agora, um ministro da Saúde que desvia o dinheiro do Estado e do cidadão e, por causa disso, provoca mortes, é um criminoso que deve ser julgado e executado.

BM: No Brasil, durante o governo Collor, o dinheiro da Legião Brasileira de Assistênciatambém foi desviado.
BEN JELLOUN: O ser humano é capaz de todas as perversidades. Somos capazes de tudo. Do pior e do melhor. O médico de que eu falo seria julgado se houvesse Justiça. É uma corrupção que tem efeitos assassinos. No limite, uma corrupção que tira dinheiro de um estabelecimento para dar a uma pessoa não me incomoda. Não é muito grave. Como, por exemplo, uma empresa, aqui na França, que financiou o jornal de um deputado em Grenoble. Pouco me importa que um deputado tenha recebido dinheiro de uma empresa que lhe presta um serviço. Isso não lesa o cidadão francês, não o impede de comer, ter luz, gás etc. A corrupção é criminosa quando ela afeta áreas como a da saúde ou da educação.

Pode-se afirmar que há uma forma de corrupção da elite, que não é criminosa, sem legitimar a prática da corrupção, sem fazer vigorar a lei do mais forte em vez da Lei? Embora tenha estranhado o próposito de Tahar Ben Jelloun, prossegui na entrevista.

BM: Na França, a história da transfusão do sangue contaminado também está ligada à corrupção, não é?
BEN JELLOUN: É uma história complicada, em que a corrupção certamente desempenhou um papel.

BM: Quanto à tragédia argelina, você acha que ela pode se alastrar para a Tunísia e o Marrocos?
BEN JELLOUN: Isso interessa aos brasileiros?

BM: Os brasileiros estão informados do que se passa na Argélia, dos assassinatos de escritores e intelectuais cometidos pelos fundamentalistas muçulmanos.
BEN JELLOUN: Isso os toca?

BM: Sim.
BEN JELLOUN: Mas há árabes no Brasil?

O que responder a essa questão, que implica a ideia de que um massacre perpetrado pelos fanáticos muçulmanos só pode interessar aos árabes? Sugiro a ele que não responda à pergunta se esta lhe parecer desinteressante. Segue-se uma resposta.

BEN JELLOUN: A situação da Argélia é preocupante para os países vizinhos, porque assistimos a uma forma de ditadura do irracional, que é o religioso. Estamos muito inquietos. O Marrocos tem uma posição mais sólida. O rei tem legitimidade política. O Marrocos nunca cortou os laços com o Islã, sempre teve uma relação equilibrada com ele. Só que há movimentos islamitas no Marrocos e é preciso ter cuidado. A gente teme o contágio. A Tunísia está muito mais ameaçada, tem enorme fronteira com a Argélia.

BM: Por que você vive na França?
BEN JELLOUN: Questão de hábito, de comodidade.