Sobre os ataques a Monteiro Lobato
Obra é incontornável e não pode ser julgada a partir da biografia do autor
betty milan
Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 07/05/2024
Monteiro Lobato (1882-1948) vem sendo sistematicamente atacado por grupos identitários. Daí a importância do colóquio organizado pela Academia Paulista de Letras (“Censura e Literatura Infantojuvenil”, nesta quinta-feira, 9, das 9h às 17h).
O evento, que tem como público-alvo professores da rede pública e privada, editores, escritores, bibliotecários e livreiros, ocorrerá na sede da academia, no centro de São Paulo, e é aberto ao público interessado. Contará com a presença de, entre outros, Mauricio de Sousa, Ruth Rocha e Ana Maria Machado.
Verdade que Monteiro Lobato fez a apologia à Klu Klux Klan e foi membro da Sociedade Eugênica de São Paulo. Verdade que Louis-Ferdinand Céline foi antissemita e colaborou ativamente com a ocupação nazista. Mas a obra dos dois é incontornável e não pode ser julgada a partir de suas biografias. Como dizia Proust, a obra literária não é o produto de um eu social, mas de um eu artístico. Não faz sentido banir Monteiro Lobato das leituras escolares. Basta contextualizar as passagens racistas e criticar.
No artigo “Rememórias de Emília” (28/6/98), publicado nesta Folha, Otavio Frias Filho (1957-2018) enfatizou o fato de Lobato ter eliminado da sua obra a relação de parentesco direta —que gera obrigação— e ter se valido da relação indireta com avós, tios e primos. Como resultado, o “Sítio do Picapau Amarelo” é regido pelo princípio do prazer. Por isso, os personagens do sítio, que convivem com criaturas fantásticas, continuam presentes no imaginário infantil brasileiro.
A grande criação ficcional de Lobato é Emília, que faz pouco dos adultos, pois eles não sabem do faz de conta. Através da boneca, o escritor autoriza a criança a ser como é e simultaneamente desautoriza os que a censuram. A criança brinca fazendo de conta e, para tanto, subverte continuamente a ordem. O sofá vira um pula-pula —o sofá ou a cama—, e a criança tira as cadeiras do lugar para fazer uma cabana. Basta-se com duas e um cobertor. Deita na cabana e já sai dela fazendo arte de novo. Note-se que a expressão é fazer arte porque o artista, como a criança, se entrega livremente à sua imaginação a fim de criar.
Emília é original, surpreendente e engraçada, personagem marcante da ficção brasileira. Pouco se importa com normas e convenções. A verdade nua e crua é a base da sua moralidade —como o é da criança, que Monteiro Lobato exaltou repetidamente na sua obra. Por ser capaz de escutá-la, saber da sua inteligência e sensibilidade. Tratou-a como um ser pensante com convicções próprias.
Ao valorizar a criança, Lobato valorizou o brincar, cuja relevância para nós é máxima, como bem diz o samba: “Com pandeiro ou sem pandeiro / Ê, ê, ê, ê, eu brinco / Com dinheiro ou sem dinheiro/ Ê, ê, ê, ê, eu brinco”. Joãosinho Trinta não cunhou por acaso a expressão “cultura do brincar”, dizendo que é a do Carnaval.
Vale lembrar que Emília é produto do trabalho de Tia Nastácia, que faz e refaz a boneca com as mãos. Talvez porque o nosso imaginário mais fecundo seja produto da cultura negra. Isso posto, militar contra o racismo é fundamental, mas, quando não há discernimento, tal prática é nociva e pode ser uma forma de barbárie.