Simone de Beauvoir, mulher de tradição
Betty Milan
Este texto saiu com mesmo título
na Folha de S. Paulo, 24/04/1986
Simone de Beauvoir não foi um dos meus mitos. Morta, ressurge e me impressiona.
Simone de Beauvoir, a heroína trágica. Imagino a cena funesta, ela querendo se deitar ao lado do cadáver de Jean-Paul Sartre, negando que a morte os pudesse separar. Releio o texto escrito depois: “Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá”. Simone de Beauvoir, a companheira inconsolável. Deveria ter sido enterrada ao lado de Sartre, como foi Heloísa ao lado de Abelardo.
Vejo as duas apaixonadas no mesmo culto, nas mãos, uma generosa oferenda. Heloísa, como Simone de Beauvoir, só queria o amor, e não o casamento: “Só te desejo por você, não quero o que te pertence ou o que você representa… O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte; o de amiga, entretanto, sempre me pareceu mais doce”. Simone de Beauvoir teve a felicidade de ser a amiga-amante e não deixou de celebrar isso, realizou o voto ancestral de Heloísa, mas também das “preciosas”, em cuja tradição se inscreve.
O feminismo de Simone de Beauvoir pulsava, insistindo na paixão do amor e privilegiando o momento do entendimento entre os sexos. A autora de O segundo sexo, aliás, não se concebia independentemente do casal e sem a troca interminável de palavras: “Durante trinta anos só adormecemos desunidos uma única vez e esta longa irmandade não atenuou o nosso interesse pela conversa”. Um feminismo em que a luta de prestígio é atenuada pelo gosto do diálogo, “o verbo que, de Heloísa a Julie de Lespinasse, de Marguerite de Navarre a Colette, de Ninon de Lenclos a Simone de Beauvoir, insufla no amor uma faísca que não se apaga com o tempo nem com as rugas”.
Daí Simone de Beauvoir ter dito que Sartre foi o sucesso indubitável de sua vida, declaração improvável na boca de uma feminista norte-americana. Considere-se a violência entre os sexos que subjaz à aparição de um grupo como o SCUM, dedicado a castrar os homens para vingar as mulheres.
Simone de Beauvoir é uma mulher invejável. Pode, por suas origens, cantar e ser como ninguém a companheira. O segundo sexo é o maior livro sobre a condição feminina, mas ela é maior ainda por sua vida, a melhor e a mais subversiva de suas obras.
Simone de Beauvoir disse não aos mitos do seu tempo para afirmar o companheirismo. Opôs-se, primeiro, ao casamento na tradição do amor cortês, pois o amor para ela supunha dois seres autônomos “ligados pelo livre consentimento”. Recusou, depois, a imposição da sexualidade ao casal. O amor físico para ela “não podia ser tratado nem como um fim absoluto nem como um simples meio… deveria ter uma papel episódico e autônomo”. Simone de Beauvoir era sexualmente livre, porque podia se entregar a uma paixão casta ou dar a mão às “preciosas”, para as quais o amor se separava dos apetites sexuais.
Só fez a modernidade reinventando a cultura francesa, que, por sua vez, autorizou a originalidade dela e a de sua obra. O que aconteceria no Brasil a uma nativa que, em 1949 ou mesmo agora, afirmasse que “o casamento é obsceno”? O que teria feito o companheiro dela lendo num dos seus romances as cartas de amor escritas por outro? Simone de Beauvoir só poderia ter escrito na França e, se pode servir de exemplo, não deve ser tomada como modelo. Vingou num meio que a esperava e saberia acolher mais esta singularidade. Morreu iluminando um céu de estrelas, onde ela hoje ora brilha entre os grandes de sua geração, ora na constelação das ancestrais irreverentes e das amantes clássicas.