São Paulo paradoxal
Betty Milan
Este texto, que integra o livro Isso é o país, saiu com
mesmo título na Folha de S. Paulo, 25/01/2004
“Amo São Paulo com todo o meu ódio”. A frase é de um mineiro memorável de São Paulo: Carlito Maia, o publicitário que tanto lançou Roberto Carlos quanto o premonitório “Lula lá”. O que significa essa frase de amor e ódio, paradoxal? O que tem ela a ver com a capital bandeirante?
Com as ruas da cidade onde o paulista não anda porque tem medo? Pelas quais só transita de carro, evitando os sinais vermelhos para chegar são e salvo?
Com os bairros ricos onde quem ousa caminhar se pergunta se alguém realmente mora nos casarões circundados por muros ou grades e nos quais o único indício da presença humana é a súbita aparição do rosto de um vigia secundada pelo latido de um cão? São residências ou casas mal-assombradas?
E o que tem a frase a ver com o centro, onde há tantos buracos nas calçadas que é melhor andar no meio da rua, apesar do lixo e das poças de água parada espelhando dengue? Com a Paulista, onde o assalto é corriqueiro, os meninos passam o dia vendendo bala para sobreviver e os deficientes esmolam exibindo um toco?
Nesse contexto em que o medo impera e a miséria salta aos olhos, só quem está drogado pelo próprio imaginário, pelo sonho de riqueza que a cidade permite realizar, ama-a sem ódio. Porque ela é desumana, injusta e assustadora.
Pelo espaço físico e pela condição do morador, São Paulo repugna. No entanto, pela possibilidade que o talento tem de desabrochar, ela arrebata.
A Semana de 22 não aconteceu aqui por acaso. A irreverência de Oswald é tão vigorosa quanto a sociedade paulista pode ser opressora. “Contra todas as catequeses… todos os importadores de consciência enlatada… as ideias cadaverizadas”. Uma irreverência destemida, na tradição dos bandeirantes. Como a de Mário de Andrade, que ousa se referir ao país num dos seus ensaios dizendo que “apesar de suas cores tão vivas só produz indivíduos de meias-tintas”. Como a de Zé Celso, cuja obra se inscreve no veio dos modernistas, demonstrando que há em São Paulo uma arte de cor viva, que depende sobretudo do empenho e do encontro das pessoas. Um teatro como o Oficina, que há décadas vinga contra todas as tempestades, graças à resistência do diretor e dos seus “amigos de ouro”, só poderia ter nascido e se perpetuado em São Paulo Uzyna Uzona onde há pessoas de coragem e encontros que fazem o Brasil.
A mesma cidade, que é repulsiva, é irresistível pela liberdade de criação que ela possibilita, pela exigência de competência e pelas trocas que favorece e são a esperança de uma solidariedade renovadora, capaz de transformar com o espírito bandeirante a quarta metrópole do mundo numa metrópole exemplar, onde a caminhada, além de possível, seja prazerosa.
Para chegar a isso, é preciso sair do ninho. Com olhos que enxergam a realidade e ouvidos que escutam os dizeres da rua:
Minha amiga, meu irmão, dá uma força, cidadão
Aceito um cheque ou um cartão
Qualquer vale refeição
Minha bala é tão boa
Pra ajudar minha coroa
Me paga um cachorro-quente
Compra a minha bala que só custa um real
A cidade tá difícil
Faço rap ou improviso
Sou da rua
Veja só como é que tá
Minha família sumiu
E hoje em dia eu já me vejo ajudando o Brasil
Veja a evolução do moleque vendendo bala e dormindo no chão
Vivendo do trocado da população
Se o tempo tá difícil
Eu faço rap ou improviso.
Douglas
Como o rap de Douglas, que mora na avenida Paulista, há outros de quem samba na lama, dando uma prova cotidiana de paciência, resistindo ao roubo e à droga. À espera de um tempo e de uma cidade menos difíceis.