São Paulo em 2023
betty milan
Folha de S. Paulo, Tendências/Debates, 06/01/23
Entra ano sai ano e não há como andar em São Paulo. São tantos os buracos que só por milagre a pessoa não cai, correndo o risco de se esborrachar. Na Paulista, o pedestre tanto pode ser assaltado quanto tropeçar num drogado cujo corpo atravessa a calçada – por estar dormindo ou já não estar vivo. Nas perpendiculares à Paulista, as tendas não param de se multiplicar.
Entre os nossos direitos fundamentais está o de ir e vir. Segundo a Constituição, somos livres para nos locomover no território nacional, podendo nele « entrar, permanecer ou sair com os nossos bens ». Isso figura no art. 5º, inciso XV, só que, na prática, o artigo nada significa. A menos que, entre os bens referidos na lei, não estejam a bolsa e o celular. Quem sai com eles na rua sem medo de ser roubado? Por não haver segurança, não gozamos do direito de ir e vir, que figura no papel mas, na realidade, é para inglês ver como se dizia, no século XIX, quando a Inglaterra exigiu do Brasil a aprovação de uma lei que impedisse o tráfico de escravos – uma lei que foi aprovada e não foi cumprida. Duzentos anos se passaram e a expressão para inglês ver continua a valer. A lei…ora a lei.
Nós tradicionalmente a desrespeitamos. Também por isso a rua é indevidamente apropriada. Se a rua é um espaço público destinado à locomoção, um espaço de uso comum, como podem as pessoas morar nela, instalar uma tenda e se apropriar da calçada para seu uso exclusivo? Obviamente não podem e precisam ser ajudadas a cumprir a lei. Por que a prefeitura não toma providências? Não tem recursos? Claro que tem. São Paulo ocupa o décimo lugar no ranking das cidades mais ricas do mundo. Até 2025, deve ser a sexta mais rica do planeta, além de ser a capital de um estado cujo PIB é maior do que o da Suécia. Dado o seu poder econômico, o perpetuamento da situação atual desqualifica a prefeitura e, mais que isso, a ridiculariza.
Por que não organizar manifestações exigindo o cumprimento do direito de ir e vir? Sei bem que, pela lei, o proprietário do imóvel –residencial ou comercial–, é o responsável pela reforma e conservação da calçada. Agora, se o pedestre sofrer danos corporais causados por um defeito na calçada, a responsabilidade é do município. Portanto cabe à prefeitura reformá-la ou conservá-la quando o morador provar que não tem condições de fazer isso.
Por outro lado, é preciso tirar da rua os drogados que aceitam se tratar e alojá-los. No que diz respeito aos que recusam alojamento e tratamento, a melhor solução é a que foi adotada na capital da Noruega. A prefeitura de Oslo definiu o espaço da cidade que pode ser ocupado pelos irrecuperáveis. Assim, o direito deles é respeitado, ao contrário do que se pretende agora fazer em Nova York: internar à força os doentes mentais que ficam na rua ou no metro.
Também está na hora de remover as pessoas das tendas para moradias construídas afim de abrigá-las. Até que seja possível encontrar outra solução. Obvio que isso requer a intervenção e o investimento da prefeitura. Mas ela cobra impostos e taxas « para custear obras, serviços e políticas essenciais para a vida na cidade ».
Vivemos, nos últimos anos, um confinamento obrigatório por causa da pandemia. Se a situação não mudar, teremos que continuar confinados em casa por causa da insegurança. Além de nos habituarmos a não enxergar o que vemos quando somos obrigados a ir para rua. Olhar é uma coisa, ver é outra e enxergar também.
Com a vacina foi possível combater eficazmente o corona vírus. Para o vírus da indiferença não existe vacina. Só podemos combatê-lo recusando a cegueira que a realidade impõe e nos manifestando de diferentes formas para defender o direito a uma cidade onde seja possível circular sem risco e sem sofrimento.
Sei bem que resolver a questão do saneamento básico, dos desmoronamentos e das inundações é prioritário. Isso não exclui a intervenção necessária da prefeitura para zelar pelo direito de ir e vir.
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Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de O Papagaio e o Doutor entre outros, membro da Academia Paulista de Letras