Por que os vivos têm de cuidar dos mortos
Revista Veja, 05/10/2011
Todas as grandes civilizações se ocuparam dos seus mortos. Tratar o corpo para conservá-lo antes da incineração ou da inumação é uma prática antiquíssima. Na época contemporânea, esta prática, a tanatopraxia, existe há mais tempo nos países de cultura anglo saxã do que nos países de cultura latina e ela é pouco conhecida no Brasil. Certamente por causa do tabu relativo à morte.
O tanatopraxista tanto pode fazer uma simples toalete mortuária quanto a conservação do corpo, introduzindo um líquido na base de formol no circuito vascular. Também pode restaurar um rosto deformado por um tumor ou fazer um molde do rosto, do busto, das mãos… Embora precise ter conhecimentos de anatomia, fisiologia e psicologia, sua profissão é considerada artística.
Cuidar da pessoa amada é indício de grande respeito e o recurso ao tanatopraxista é benéfico para a família pois estabelece uma continuidade entre o momento da morte e o da incineração ou da inumação, evitando que a separação seja abrupta e amenizando a dor. A presença do tanatopraxista na casa do morto é em geral vivida pelos familiares como uma ajuda.O filme de Yojiro Takita, Partida, ganhador do oscar de 2009, é um belíssimo exemplo disso.
A ritualizaçao é necessária porque ninguém aceita a morte naturalmente. Queremos vê-la positivamente, isto é, como uma transformação, uma mutação ou um acesso do morto a um outro mundo. A ritualização está a serviço desta transformação, sem a qual o luto é mais penoso.
Nós sofremos sem os nossos mortos, mas não podemos viver com eles. O ritual serve para encontrar a boa distância. Como diz Baudry, grande estudioso do assunto, temos que evitar a disjunção – a completa negação da morte – e a confusão – a relação ininterrupta com o morto. Só assim é possível viver. Quanto menos disjunção e confusão, mais felizes seremos. Inclusive porque a morte de um outro ser humano nos reenvia à nossa condição de mortais e nos humaniza, lembrando que tudo passa e ensinando assim a valorizar o presente.