Pierre Gourou: A terra
Betty Milan
Texto integrante do livro O século.
Publicado como “O descompasso dos trópicos”,
Folha de S. Paulo, 31/05/1998
Pierre Gourou nasceu com o século na Tunísia e tornou-se um dos maiores geógrafos europeus. Ficou conhecido em 1936 por uma tese sobre os camponeses do Delta do Tonquim (Vietnã), na qual mostra que a fatalidade tropical não existe, tudo é função da tecnologia, do enquadramento – títulos de propriedade sérios, presença de agrônomos competentes, por exemplo – e da ruptura do isolamento pelas redes de comunicação. Especializou-se no estudo dos países tropicais e sobre eles publicou, além de centenas de artigos, vários livros de grande influência na formação de geógrafos brasileiros, como Les pays tropicaux. Principes d’une géographie humaine et économique (“Os países tropicais. Princípios de geografia humana e econômica”), de 1947, e Pour une géographie humaine (“Por uma geografia humana”), de 1973. Conheceu o Brasil e sobretudo a Amazônia, tema de páginas extraordinárias do livro Terres de bonne espérance. Le monde tropical (“Terras de boa esperança. O mundo tropical”). Foi eleito professor do Collège de France em 1947 e depois ensinou na Universidade Livre de Bruxelas. Faleceu em 1999 na capital belga, onde vivia.
OS TRÓPICOS NÃO SÃO TRISTES
Betty Milan: O senhor, contrariamente a Lévi-Strauss, escreveu que os trópicos não são tristes. O sociólogo Gilberto Freyre também pensava isso.
Pierre Gourou: Não sei em que os trópicos seriam tristes. Dizem que são insalubres, mas isso não se deve à natureza, e sim a um atraso de civilização. Nunca fiquei doente nos países tropicais e estive muito tempo na Indochina e na África.
BM: No Brasil também, não é?
GOUROU: Oito meses, e um mês na Amazônia, que, aliás, me interessou muito. Uma natureza tão diferente das que eu conhecia, e as tradições portuguesas que se adaptaram tão mal ao meio ambiente… Me formei no trópico em países de alta civilização, o Vietnã, por exemplo, onde havia 400 habitantes por quilômetro quadrado.
BM: O senhor nasceu com o século, quando os países tropicais eram colônias ou tinham existência política marginal. Hoje em dia, com exceção da África, eles estão saindo do anonimato. A ideia de que o trópico é uma região geograficamente maldita não faz mais sentido, não é?
GOUROU: O problema do trópico é que ele é mal explorado pelos seus habitantes. Os brasileiros se adaptaram ao trópico, salvo à Amazônia. Aí a gente não tem familiaridade com o meio. Não encontrei um único índio, só os portugueses amazonenses, ou seja, os mestiços, cujas técnicas eram simples demais. A culpa não era deles, claro. Em 1947, em Gurupa, uma cidadezinha de mil habitantes, não havia água nem luz. Um único relógio, que pertencia à professora. A pobreza era extrema. Todas as casas estavam em ruínas. O padre só ia à igreja para os batizados e os casamentos. O cemitério era de judeus marroquinos, que foram para a Amazônia na época da exploração da borracha.
BM: A que se devia tamanho atraso?
GOUROU: À organização social. A cidade era controlada pelos poderosos de Belém, os donos do comércio, capazes inclusive de assassinatos. Tudo é questão de civilização – e esta pode perfeitamente prosperar em países tropicais. O problema é que certos países não participam ainda da modernidade, como os africanos, por exemplo. Mas isso pode mudar. Trata-se apenas de um atraso histórico. Repito que a civilização é tudo. Considere o caso do Brasil durante o governo militar. Gastaram um dinheiro louco na Transamazônica. Não sobrou quase nada do investimento, porque não era adaptado ao meio. Levaram para lá gente sem instrução alguma, o caboclo. Não houve e não podia haver progresso. Aliás, é possível que o Brasil não tenha interesse em transformar a Amazônia. Há tanto por fazer em outros lugares, em toda a região Leste e Sul, onde há operários absurdamente miseráveis. Os plantadores de cana-de-açúcar do Nordeste ganham pouco mais de um dólar por dia. Para viver, é preciso ganhar dez. A miséria é um hábito ruim que vem da escravatura. Tudo depende da organização social. Um problema grave que existe no Brasil é a prolificidade dos pobres. Para corrigir isso, leva tempo. Trata-se de um círculo vicioso. Para que os pobres parem de ter tantos filhos, é preciso que eles sejam menos pobres, mais bem-instruídos. Na minha opinião, a Igreja não desempenha o papel que deveria, está muito longe do povo. Lembro de uma cidade no estado de São Paulo, com 70 mil habitantes, onde havia um único padre que passava o tempo fazendo casamentos e não se ocupava da caridade, que é indispensável.
A AMAZÔNIA NÃO É UM DOS PULMÕES DA TERRA
BM: O senhor se manifestou contra a ideia de que a Amazônia seja um dos pulmões da Terra e de que o desaparecimento da floresta teria efeitos cataclísmicos sobre o clima.
GOUROU: Foram os americanos que lançaram essa ideia. Queriam ganhar dinheiro fazendo propaganda pela proteção da Amazônia. O clima do mundo não depende do que acontece na Amazônia, mas da repartição das terras e dos mares. Convidaram reis e presidentes da República para a conferência do Rio de Janeiro (ECO 92) inutilmente.
BM: O senhor está escrevendo um livro cujo título é Geografia e civilização. De que se trata?
GOUROU: A geografia, contrariamente ao que se ensina na escola, não pode ser dividida em geografia física e geografia humana. Trata-se de uma coisa só. Toda paisagem é, antes de mais nada, uma paisagem de civilização. A ideia de que a natureza vem antes é uma ilusão. O prioritário, do ponto de vista do geógrafo, não é o físico, porém a civilização, ou seja, o conjunto de técnicas de produção e o enquadramento.
BM: E o que caracteriza o século XX no que diz respeito à civilização?
GOUROU: O século XX reforçou-a por ter aumentado a capacidade de produção, a produtividade das pessoas.
BM: O senhor afirma isso apesar de Chernobyl?
GOUROU: Na União Soviética, houve um esforço fantástico para substituir a natureza pela civilização. Não deu certo. O sistema produtivo requer certa moderação. Os russos valorizaram demais o átomo e depois construíram indústrias atômicas que simplesmente não funcionam, são perigosas. O futuro, aliás, talvez nos mostre que o átomo é um perigo para a civilização… A China, ao contrário da União Soviética, parece estar evoluindo bem. Talvez venha a ser, no próximo século, a segunda potência mundial. A população cresce menos do que antigamente e eles desenvolvem uma indústria fantástica. A China não tem muitos recursos, mas tem uma organização forte. Acabam de comprar dos suíços uma grande quantidade de máquinas de tecelagem. Vão vender a produção no mundo inteiro.
BM: E a Europa?
GOUROU: O campo está se esvaziando e as metrópoles não param de crescer. A gente não sabe mais dirigi-las. As nossas sociedades evoluídas vão ter problemas graves por não saberem como controlar as cidades.
BM: Por que a África não se desenvolve?
GOUROU: Por falta de organização. Não há mais países coloniais e os países independentes não são capazes de se administrar bem. Estão divididos entre as tradições africanas e uma evolução mais moderna. Por enquanto, continuam a ser mais africanos do que modernos…
BM: Ao Brasil, o que falta?
GOUROU: Li no jornal que alguns industriais de São Paulo querem transferir suas indústrias para o Paraná, onde os sindicatos são fracos e os operários não podem exigir salários elevados. Seria a ruína de São Paulo. Trata-se de um exemplo de enquadramento insuficiente. As autoridades não têm força para enquadrar os industriais.
A GEOGRAFIA E A CIVILIZAÇÃO NO SÉCULO XX
BM: Em que consiste o progresso da geografia no século XX?
GOUROU: Na descoberta de que as condições naturais não são determinantes. O subdesenvolvimento da África não é decorrente da natureza africana, porém de uma insuficiência da civilização africana. O defeito da geografia do passado foi considerar que primeiro se devia estudar a geografia física e depois a humana. Isso não corresponde a uma verdade. É preciso primeiro estudar a civilização, as técnicas de produção e o enquadramento. A geografia física, a gente examina depois.
BM: E, do ponto de vista da civilização, o que mudou?
GOUROU: As técnicas de enquadramento se tornaram mais dominadoras. Num país como a França, por exemplo, os campos eram populosos e os camponeses produziam a sua alimentação e a do resto do país com técnicas muito simples. Hoje em dia, as técnicas de enquadramento se aperfeiçoaram e limitaram a importância das técnicas de produção. Os cavalos foram suprimidos, porque há motores, e as poucas pessoas que trabalham na terra estão enquadradas pelas escolas, pelos bancos, pelo Estado. O enquadramento é mais importante do que a produção. Isso muda inteiramente a paisagem. Considere os Alpes europeus. Antigamente, eram destinados à produção em vista do consumo dos moradores. As vacas produziam o leite e o queijo que eram consumidos e, só eventualmente, vendidos. Hoje, tudo mudou. Os habitantes dos Alpes já não se ocupam dos seus animais. Descobriram um enquadramento novo, que é o esportivo. Os Alpes estão destinados ao esqui, ao repouso na montanha etc. A produção praticamente inexiste. O turismo e os esportes de inverno é que são importantes e o enquadramento é fundamental, as estradas, os meios de transporte…
BM: O exemplo é muito claro.
GOUROU: Tudo agora é assim. Quanto mais desenvolvidos os países, mais isso se verifica. A região da Provence está se esvaziando, salvo à beira-mar, onde há uma massa enorme de gente que vai aproveitar o sol graças ao automóvel, ao avião etc. Já não se plantam oliveiras. As azeitonas são compradas da Tunísia, país suficientemente pobre para produzir azeitonas.
OS GOVERNOS NÃO SÃO MESTRES DA CIVILIZAÇÃO
BM: Qual o papel que o geógrafo deve e pode desempenhar?
GOUROU: O geógrafo deve explicar os fatos relativos à civilização, ele não dá conselhos. Mesmo porque nenhum governo é mestre da civilização, que é sempre mais forte. De que adianta dar conselhos a um governo que se confronta com problemas materiais graves? E que sentido faz, aliás, perguntar de que serve a geografia ou a história? Por acaso o conhecimento histórico impediu os homens de fazer besteiras? Nunca fizemos tantas quanto no século XX, que teve as duas maiores guerras de todos os tempos, os dois maiores massacres. Verdade que, diante da automatização crescente, há um excesso de homens. Foi a bomba atômica que parou a guerra. Sem ela, ainda estariam se matando. Com ela, abrimos um capítulo imprevisível da história.
BM: O senhor está dizendo que o desenvolvimento técnico pode ser um fator contrário à civilização…
GOUROU: Não, ele faz parte da civilização, mas pode ser contrário à felicidade geral. Pense nas possibilidades de comunicação hoje existentes – a internet, por exemplo. Como ter controle sobre isso tudo?
A CIVILIZAÇÃO DA PALAVRA REGISTRADA
BM: O senhor escreveu a vida inteira. Qual é, na sua opinião, o futuro da escrita?
GOUROU: É possível que a escrita venha a ser substituída pela gravação, a palavra gravada. No meu tempo, era lógico escrever. Em breve, não haverá mais necessidade alguma de escrever, porque falaremos e seremos transmitidos na Terra inteira. Estamos em vias de perder a escrita. Também perdemos o cálculo. Rumamos para sociedades em que haverá apenas alguns indivíduos extremamente competentes, astuciosos…
BM: Qual será o perfil deste indivíduo?
GOUROU: Um sujeito que vai continuar se instruindo, apesar de os outros não serem mais sequer capazes de calcular, de fazer uma pequena divisão. Tal indivíduo pertencerá no futuro à classe dos patrões. Poderá então haver uma tirania decorrente do monopólio da ciência.
BM: O monopólio do raciocínio e da escrita…
GOUROU: É possível, aliás, que nós estejamos entrando noutra civilização.
BM: A civilização da palavra?
GOUROU: Da palavra registrada.
BM: Os que souberem escrever poderão se expressar melhor…
GOUROU: Os que souberem escrever se tornarão deuses, chefes… Mas isso tudo supera a minha geografia. O fato é que o mundo desliza sob os nossos pés e pode ser que, em breve, não tenhamos comida por ninguém se interessar mais pelo cultivo do trigo. Pode haver uma crise e daí os países tropicais vão se beneficiar. Agora, produzem pouco, mas produzirão mais se o mundo precisar.