Paul Tabet: A literatura e a liberdade
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Foi publicado como
“O jardim secreto da escrita”. Folha de S. Paulo, 25/08/2003
Paul Tabet é doutor em filosofia. Foi adido cultural da França no Marrocos durante os anos 1970 e na Itália nos anos 1980. Desde 1990, dirige em Paris a Fundação Beaumarchais, que descobre e auxilia – material e artisticamente – novos autores de teatro, cinema, ópera, televisão, rádio e circo. Além de produtor cultural, Paul Tabet é escritor, autor, entre outros, de Elissa Rhais, um livro dos mais intrigantes, publicado na França em 1982 e lá adaptado para a televisão em 1993, que ganhou tradução brasileira em 2002 pela editora Companhia de Freud.
Elissa Rhais foi uma escritora de grande sucesso na França entre 1918 e 1939, ano em que uma estranha verdade sobre ela vem à tona. Leila Bou Mendil, conhecida como Elissa Rhais, nascida em Bilda, Argélia, de pai muçulmano e mãe judia, é analfabeta e só fez “assinar” os livros escritos por um jovem parente, Raul Tabet, que passava por seu filho e foi seu prisioneiro durante vinte anos.
A leitura do romance inspirado nessa história faz refletir sobre a relação entre o escritor e o autor e entre a escrita e a liberdade. Para me aprofundar nessas questões, fui ter com Paul Tabet, o autor, que é filho de Raul Tabet. Segue a entrevista que Paul me concedeu em seu escritório da Fundação Beaumarchais.
Betty Milan: O seu romance me deixou muito perplexa. Porque se trata de um romance, mas, imediatamente depois do fim, você conta que é o filho de Raul, um dos personagens. Ora, o autor de um romance pode se inspirar na figura do pai, mas não pode escrever que é o filho de um personagem sem destruir a obra romanesca e frustrar o leitor, que se sente enganado. Por que você fez isso? Porque desejava escrever um romance, e não uma narrativa? Ou tinha o intuito consciente de romper com a convenção?
Paul Tabet: Houve mais de cem artigos escritos sobre este livro, mais de trinta entrevistas. Gosto da sua questão, porque é a primeira vez que alguém me diz que se sentiu enganado. Do meu ponto de vista, o autor pode misturar os gêneros, e a ficção pode enganar. O romance é a terra da liberdade absoluta e, nele, a mentira é crucial.
BM: Você quer dizer com isso que rompeu com a convenção conscientemente?
TABET: Sim, foi. Só que a ruptura se impôs. Porque eu comecei a escrever o romance na primeira pessoa, mas consegui ir em frente. A passagem para a terceira pessoa me liberou e permitiu que eu entrasse mais no universo de Leila e Raul. No início, eu tinha o projeto de reabilitar meu pai, no que diz respeito à sua identidade de autor e romancista. Podia ter me valido da imprensa, feito um escândalo. Ou podia ter escrito uma narrativa. Me senti obrigado a passar pelo romance, porque o universo dele era romanesco.
BM: O caso de Leila e Raul é interessantíssimo, pois Raul era um escritor que, para existir, dependia da existência de uma contadora de histórias. A prova é que, sem Leila, Raul perdeu a inspiração. A meu ver, o escritor, no caso, era o produto do encontro dos dois, e a única expressão material desse escritor era o nome Elissa Rhais, que não podia ser o pseudônimo de Leila, porém também não o de Raul. Como você vê isso?
TABET: Na primeira parte da sua questão, você fala exatamente como Leila. Porque, quando ela quis convencer meu pai a aceitar o pseudônimo, ela disse que Elissa era ela e Rhais era ele. Na intimidade dos dois, isso era verdade. Só que o nome Elissa Rhais, para o público, era um nome de mulher, que encobria o homem. Ora, a gente escreve para ser publicada e para ser lida. Agora, concordo que ela foi coautora no início e inspiradora depois. Tanto no plano literário quanto no plano psicológico. Porque os primeiros romances são a transcrição literal das histórias que Leila contava. Isso posto, será que o autor é o sujeito que conta a história ou o que a escreve?
BM: O que reinventa a história escrevendo.
TABET: Sim. Por outro lado, o papel que Leila desempenhou na vida do meu pai foi decisivo, obrigando-o a escrever, encarcerando-o para fazer isso. Do ponto de vista da literatura, foi positivo.
BM: O seu livro me fez pensar na diferença entre a literatura ocidental e a oriental. No Ocidente, o autor é um escritor ou ele não existe. No Oriente, já não é assim. O autor não precisa escrever, ele pode simplesmente contar. Leila talvez recusasse essa diferença e, por isso, se considerava uma escritora.
TABET: No livro, Leila se serve da literatura para se vingar do fato de ter sido escravizada, humilhada… A literatura dá a ela a ocasião de existir, de ter um papel social. Mas eu acho interessante pensar na diferença entre Ocidente e Oriente para explicar a história de Leila e Raul. A Biblioteca de Alexandria tinha tantos textos quanto contadores de história, autores de literatura oral, e o imaginário oriental está muito presente no nosso.
BM: Por isso eu considero que Leila não foi uma impostora. Pertencia a uma cultura que a autorizava a desejar o reconhecimento como autora – e ela o desejou sem nenhuma culpa.
TABET: A ponto de se apresentar como uma grande autora nos salões literários parisienses para os quais era convidada. Apesar dos erros de francês que Leila cometia, ela não tinha inibição alguma, fazia longos discursos. Falava como se fosse um Mauriac…
BM: Você diz que Leila escravizou Raul durante vinte anos. Na minha opinião, ela fez isso porque, do contrário, não poderia transmitir para as outras gerações de mulheres a experiência terrível que viveu no harém. Vejo nela uma figura liberadora e não estou certa de que tenha escravizado Raul. A menos que se trate de escravidão voluntária.
TABET: Leila é, sem dúvida nenhuma, uma figura positiva. Recebeu cartas das representantes dos primeiros movimentos feministas. Por ter sido considerada um símbolo da mulher que conquistou uma sociedade de homens. Tenho as respostas que ela enviava. São cartas fundadoras do feminismo. Só que as cartas eram escritas por um homem, meu pai. Isso irritou as feministas. Não vejo o porquê, aliás. A história mostra que não são necessariamente os membros de um grupo que defendem melhor as ideias do grupo. Muitas revoluções de esquerda foram feitas por burgueses.
BM: Gostaria que você falasse da relação entre a arte e a liberdade e, em particular, da relação entre a escrita e a liberdade.
TABET: A gente quando escreve é determinada pelo inconsciente. Há coisas que acontecem na escrita sobre as quais não há como ter controle, coisas que desembarcam no papel e surpreendem. Quando reli Elissa Rhais, eu descobri que era uma metáfora da criação.
BM: Seria possível desenvolver essa ideia?
TABET: O isolamento é um dos lugares privilegiados da criação, e a história literária mostra claramente a diferença entre as obras engendradas na solidão e as obras mundanas. Meu pai foi prisioneiro de Leila e soube se valer disso para fazer uma obra. Acredito que o isolamento também é decisivo no amor. Não há nada mais bonito do que o isolamento amoroso. A partir do momento em que os amantes começam a se relacionar com outras pessoas, eles começam a se separar. A concentração é decisiva para que um possa oferecer ao outro o próprio sonho, para que um deixe o outro entrar no jardim secreto do seu imaginário, jardim onde também florescem a obscenidade e a loucura. Quem oferece o sonho corre um grande risco. Ao fazer isso, dá ao outro o presente supremo. O imaginário é o nosso tesouro e o baluarte da resistência. Os ditadores sempre souberam disso… Daí a censura.