Paris não acaba nunca I

Paris não acaba nunca (1996)

 

I

P: Como surgiu este livro?
BM: O livro é o produto de longa errância através da cidade. Antes de ter constituído família em Paris, morei lá sozinha e andava muito pelas ruas. Mas escrever mesmo foi quando um membro da família francesa adoeceu e eu me disse que a cidade, que até então havia sido ótima, ia ficar péssima, a bela Paris ia acabar. Escrevi como quem se despede e, paradoxalmente, fui feliz. Revi lugares que conhecia e procurei me informar mais sobre a história da cidade. Descobri coisas inteiramente novas relativas à arquitetura, à pintura, à literatura e à gastronomia, um capítulo que eu, aliás, privilegio no livro. A escrita me permitiu ver o que eu antes não enxergava, descortinou cenas novas. Quando passei a escrever a segunda parte do livro, o Jornal da Tarde já estava editando a primeira, e isso foi particularmente estimulante.

P: Você acha que Paris é uma festa?
BM: Numa das crônicas, eu digo que Paris é uma obra de arte e acrescento que ela atrai os artistas por isso. Quem escreveu que Paris é uma festa foi o Hemingway, não eu. Paris pode ser até muito triste, como qualquer outro lugar do mundo, mas o que interessa é que ela não acaba nunca e deixa sempre a gente na posição de quem quer ver mais e ainda. São miríades de igrejas, de quadros, de jardins, de restaurantes e de bistrôs. Paris é como Xerazade, promete toda noite uma história nova. Mas, para descobrir isso, é preciso tempo. Você está certo em dizer que fiz da cidade uma personagem em torno da qual orbito. Ela já havia sido cenário das obras de muitos escritores: Victor Hugo (Notre-Dame de Paris), Breton (Nadja), Aragon (O camponês de Paris ), Hemingway (Paris é uma festa)…

P: Por que você se refere no livro sobretudo aos escritores americanos?
BM: Eu certamente privilegiei os escritores estrangeiros por ser uma estrangeira e saber profundamente dessa condição, ainda que tenha marido e filho franceses. A condição, que durante anos foi incômoda, de repente se tornou um verdadeiro trunfo – eu me dei conta de que podia ver o que os franceses não viam. Do cocô nas ruas às particularidades no modo de receber, cozinhar, comer etc. Com olhos e ouvidos de brasileira, eu estava mais armada para descobri-los. Não há nisso, aliás, nada de excepcional. Alguns dos melhores livros sobre o Brasil foram escritos por estrangeiros: Debret, Saint-Hilaire, Rugendas, Lévi-Strauss. Com o estranhamento, a gente vai mais longe na descoberta do outro, desde que possa não se sentir perseguido. Num certo sentido, o meu livro é uma apologia do cosmopolitismo, que também é uma tradição paulista.

P: Paris é uma cidade amada pelos escritores…
BM: Paris desde sempre amou os escritores, que ela evoca através de estátuas, museus, placas, nomes de ruas, restaurantes e cafés. A cidade também foi muito amada por eles. Entre os paulistas, quem melhor a cantou foi Oswald de Andrade. Há um poema em que ele declara voltar sempre para o Brasil contrabandeando saudade de Paris. Confesso que não li todos os autores que escreveram sobre Paris, e eu aliás nunca faço estudos exaustivos sobre o que quer que seja – procuro, sim, olhar e ouvir exaustivamente. Mas Baudelaire e Breton foram duas referências importantes. Baudelaire porque também para ele a cidade era uma droga que propiciava o esquecimento. Breton porque seu grande livro, Nadja, é o resultado de uma errância pela cidade. E houve outro autor que foi uma referência permanente: Victor Hugo. É impossível olhar para as torres de Notre-Dame sem imaginar o corcunda tocando o sino ou acavalado sobre ele.

P: Por que você não fala do lado negativo de Paris?
BM: Olha, eu tenho um filho de 13 anos que vai à escola em Paris e todo dia tem que evitar os lugares onde pode sofrer uma violência física. Metrô, ele procura não tomar, por causa dos tantos atentados. Mas isso agora acontece no mundo inteiro, no World Trade Center ou em Buenos Aires, e a imprensa jornalística e televisiva dá conta do terror e do medo. A Paris que me interessa é a que favorece os artistas, os escritores e as pessoas que querem passear e com isso se descobrir. O meu livro também é uma apologia do passeio. Por que não? Se der sorte, ainda vou passear muito, porque Paris não acaba nunca e quanto mais eu escrevo mais eu vejo.

P: O seu texto tem um ritmo muito particular. É um tanto… metropolitano, não?
BM: Certíssimo. Não havia pensado na relação existente entre a metrópole e o estilo do meu texto, porque sempre escrevi cartas sem parágrafos, contendo sentenças articuladas, sem maiúsculas ou ponto final. Inventei, ao longo dos anos, uma maneira própria de pontuar que, supostamente, deu certo. Mas faz sentido pensar na relação que você sugere, porque na metrópole a gente tem experiências que se impõem isoladamente, é a súbita visão de um arranha-céu, de uma árvore que resistiu a tantas investidas dos citadinos, de um menino com várias cicatrizes no rosto que ganha o seu pão vendendo bala na rua, ou de um mendigo vestido de preto em quem a gente, na calada da noite, quase tropeça. São visões sempre surpreendentes e que, de imediato, não se articulam. Escrevi de modo a restituir essa experiência. Quero um leitor que possa errar pelo texto e, com ele, se surpreender. O que me interessa é passar uma emoção.

________
Jornal da Tarde, São Paulo, Caderno Sábado, 2/03/1996.