Pandemia e literatura
bettymilan
Cadernos Museu Ema Klabin. v.3. 2020
A pandemia foi o tema de inúmeros romances, entre eles A peste, de Camus, e Um diário do ano da peste, de Defoe. Dois clássicos que ninguém pode deixar de mencionar.
A peste foi publicado em 1947. Diz res- peito a uma peste que assolou a cidade de Oran, na Argélia. Para escrever o livro, Camus se inspirou na cólera que dizimou grande parte da população da cidade em 1849,
mas situou a história na década de 1940. O romance foi interpretado como metáfora dos horrores da Segunda Guerra Mundial.
Um diário do ano da peste é um romance escrito no século XVIII, sobre uma peste que matou 70 mil pessoas em Londres, no século anterior. No livro, Defoe mistura reportagem e ficção, esmerando-se em registrar os fatos, além de criar personagens.
Aos nomes de Camus e Defoe é preciso acrescentar um outro, nunca mencionado: Dostoiévski. Antes de justificar esta afirmação, vale evocar brevemente a história da pandemia no Ocidente.
No século VI, ela ficou só na bacia do Mediterrâneo – parece ter sido causada pela varíola. Na Idade Média, foi a peste negra, a pior de todas. Se disseminou depois de uma guerra entre os genoveses e os tártaros, vencida pelos primeiros. A vingança dos tártaros foi terrível. Jogaram cadáveres de pesti- lentos sobre os vencedores e a peste tomou Itália, França, Espanha. Infectou dois terços da Inglaterra e atingiu os países nórdicos, Alemanha, Polônia, Rússia… Em menos de quatro anos, acabou com um terço da popu- lação europeia. Os vivos não eram suficientes para enterrar os mortos.
Depois, no século XIX, houve uma terceira pandemia, que Dostoiévski previu. No fim de Crime e castigo, Raskolnikov adoece e sonha com uma praga nunca antes vista. O narrador diz que uma “peste terrível, inédita e inaudita, que marchava das profundezas da Ásia” cai- ria sobre o mundo… Tirante os escolhidos,
os outros morreriam por causa de um ser microscópico que entraria no corpo humano.
Dostoiévski escreveu isso em 1866. O ser microscópico foi descoberto, durante a ter- ceira pandemia, em 1889, por Alexandre Yer- sin, aluno de Pasteur. A teoria dos miasmas caiu por terra – ninguém mais poderia invocar satanás sem ignorar a ciência.
Dostoiévski era vidente e não só previu a terceira pandemia como a natureza do ser microscópico, dizendo que seria dotado de inteligência e vontade. Pois é disso exatamente que se trata no caso do vírus, pois ele tem um genoma. Quando se liga a uma célula do corpo humano, é o princípio do fim. Obriga a célula a produzir outros vírus. Passa a emitir ordens tiranicamente.
Quem trata do tema pandemia e literatura precisa levar em conta a vidência dos escrito- res que são capazes de prever e compreender acontecimentos futuros, conferindo à sua arte um caráter profético. A exemplo disso, Nietzsche escreveu no fragmento “O futuro da ciência”: “o interesse pela verdade vai aca- bar, à medida que garanta menos prazer; a ilusão, o erro, a fantasia conquistarão passo a passo, estando associados ao prazer, o território que antes ocupavam: a ruína das ciências, a recaída na barbárie, é a consequência seguinte”.
Nietzsche antecipou a atual desqualificação da ciência. Kafka, por sua vez, antecipou em O processo – que diz respeito à manipulação da lei – a institucionalização da mentira. O escritor contemporâneo Amin Maalouf escreveu O naufrágio das civilizações, que termina com uma referência forte ao Titanic: “Seria triste se o barco dos homens continuasse a vagar em direção ao seu fim, inconsciente do perigo, persuadido que ele
é indestrutível, como no passado o Titanic – antes de bater na fatídica montanha de gelo, enquanto o champanhe jorrava e a orquestra tocava ‘Mais perto quero estar’.”
O tema deste pequeno texto sugere outro que pode ser longamente desenvolvido: literatura e profecia.