Octavio Paz: Sob o domíno de Eros
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Publicado como “Sob o domíno de Eros”.
Folha de S. Paulo, 19/06/1994
Poeta e ensaísta, Octavio Paz foi Prêmio Nobel de Literatura em 1990. Nasceu no México em 1914 e passou a infância nos Estados Unidos com a família. De volta ao México, formou-se em direito e fez especialização em literatura. Lutou na Espanha, em 1937, ao lado dos republicanos, mas nunca abraçou o comunismo. De 1946 a 1951, viveu em Paris, onde se ligou a André Breton e frequentou o grupo surrealista, no qual encontrou o poeta Benjamin Péret, que viveu no Brasil e no México e foi seu tradutor para o francês. Além de escritor e tradutor, Octavio Paz foi diplomata. Demitiu-se do cargo de embaixador de seu país na Índia em protesto contra o massacre da Praça das Três Culturas (Tlatelolco, 1968), no qual morreram mais de cem estudantes mexicanos. Comentando sua morte em 1998, o escritor peruano Mario Vargas Llosa o qualificou como “a consciência viva de sua era”. É conhecido no Brasil sobretudo por seus ensaios, como O arco e a lira, Signos em rotação, O labirinto da solidão entre outros.
À jornalista que perguntou a Octavio Paz se ele acaso não temia ficar colado à imagem que a notoriedade lhe dava, ele respondeu: “Não acredito nessas consagrações. A única consagração é um leitor capaz de dialogar com a gente. Não, eu não penso que esteja impressionado com os meus sucessos. A vida inteira as minhas opiniões foram minoritárias”.
Precisamente por querer o diálogo ou o encontro, ele lançou um ensaio sobre o amor, A dupla chama, que não cessa de reenviar o leitor à sua própria experiência e de fazê-lo considerar, através desta, as diferentes ideias do texto.
Escrito para nos convencer do caráter historicamente subversivo do amor, que, contrariando a tradição ocidental, enobreceu o corpo, o livro é um ensaio de poeta. Por isso mesmo, a chama que ele acende não vai se apagar. “O amor é uma flor sangrenta e é também um talismã: a vulnerabilidade dos amantes os protege”, escreve Octavio Paz. E quem poderá se esquecer do que ele diz da pessoa amada: “Terra a descobrir e casa natal”.
Tendo em vista A dupla chama, fui ter com Paz no Hotel Lutetia, onde, apesar da minha oposição inicial, ele deu a entrevista num salão repleto. As idas e vindas das pessoas em momento algum o molestaram, e eu, que temia não compreender o seu espanhol, logo fiquei à vontade. Só quando eu não ouvia ou não entendia, Octavio Paz passava do espanhol para o francês, a língua em que eu lhe fazia as
perguntas, não por ele desconhecer o português, mas por conhecer menos o português do que o francês, a segunda língua dos escritores latino-americanos da sua geração.
Depois da entrevista, Paz me convidou para tomar um café. Contou-me, durante a conversa, que foi tradutor de Fernando Pessoa e falou com admiração de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira (2).
Betty Milan: O senhor diz na introdução ao livro A dupla chama que, antes de escrevê-lo, hesitou muito, mas não teve como não escrever este livro sobre o amor e fez isso com um “desespero alegre”. Que relação o senhor estabelece entre a escrita e o amor?
Octavio Paz: Há uma relação íntima quando se trata de um certo tipo de escrita – a escrita literária, a poesia ou o romance. Há muitas formas de escrever. Quando a gente quer expressar algo de muito profundo, escreve um poema ou um romance, procura assim objetivar a paixão. Em geral, a escrita nasce de uma vocação, a gente está condenada a escrever sobre certos temas. Você, que é escritora, sabe disso. Acontece a mesma coisa no amor, que começa com uma atração involuntária – a que a gente está destinada – e depois se converte, através do livre-arbítrio, numa forma de liberdade.
BM: O senhor utilizou a palavra condenada. Em que medida existe um livre-arbítrio?
PAZ: Trata-se de uma questão tão antiga quanto a filosofia. Não há resposta e as respostas que eu encontrei me parecem igualmente insatisfatórias. Há uma eterna relação entre a palavra “destino” e a palavra “liberdade”. Os gregos viram isso muito bem. Para que o destino se realize, é necessário que ele conte com a cumplicidade dos homens. Para que Édipo(3) cumpra o seu trágico destino, ele tem que escolher voluntariamente, sem saber o que está fazendo, claro. Quero dizer que em cada ato humano há uma dose de determinismo, mas este não pode se realizar sem a liberdade, que, por sua vez, necessita do destino para se realizar. Podemos dizer que, se a liberdade é uma condição da necessidade, o inverso também é verdadeiro. Não há como considerar separadamente a palavra destino e a palavra liberdade. Os dois termos estão perpetuamente em luta; e um não vive sem o outro.
BM: Agora que o senhor já escreveu o livro com um “desespero alegre”, talvez seja possível me dizer por que escolheu o amor como tema.
PAZ: Eu o escrevi com um “desespero alegre” porque o escrevi no final da minha vida. Mas o que importa é que eu o escrevi. Por que o fiz? Desde que comecei, quisera ser, quisera ter sido… a gente até começa a falar no passado… bem, quisera ter sido poeta. Os meus melhores poemas foram de amor. Às vezes, foram poemas eróticos. O tema do amor é uma das minhas obsessões, um dos eixos em torno dos quais girou a minha vida pessoal e também a minha vida intelectual.
BM: Sim, mas por que o senhor escreveu um ensaio?
PAZ: Porque queria explicar o amor para mim mesmo. Quando comecei a escrever poemas, eu me disse que precisava escrever algum ensaio para justificar o ato aparentemente absurdo de escrever poemas. O mesmo ocorreu com o amor.
BM: O senhor afirma que Platão(4) teria ficado escandalizado com o que nós chamamos amor. Seria possível comentar essa frase?
PAZ: Para Platão, o amor não tinha o sentido que damos a ele e que surgiu na Idade Média com a poesia provençal. O amor, para Platão, era o erotismo, a ação de Eros, o deus da luz e da escuridão, o mensageiro, a força atuante. Platão concebia o amor como um desejo de beleza que terminava na contemplação das ideias eternas. Ademais, o amor não se dirigia a uma mulher, e sim aos efebos. O amor de que falamos, e que hoje pode ser homossexual, nasceu como uma paixão heterossexual. Nele existe um gosto pelo sofrimento, pela tragédia – como em Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta(5) –, que teria escandalizado Platão. O amor também escandalizou os cristãos, pelo fato de se colocar numa criatura humana o que é próprio da divindade. Lope de Vega(6) diz que, no amor, a gente busca o eterno no que é perecível. O amor é uma blasfêmia para a Igreja; ele é subversivo diante da filosofia e da religião.
BM: O senhor diz que o amor é uma aposta extravagante na liberdade, pois o livre-arbítrio transforma uma atração involuntária entre duas pessoas em união voluntária. Isso é bastante claro quando pensamos em Tristão e Isolda ou em Romeu e Julieta. Mas o romance História de O (7) não é uma aposta extravagante na servidão?
PAZ: A questão é muito interessante. Mas o decide, porque ama René, que deseja se deixar escravizar. Os estoicos pensavam que só se pode afirmar a liberdade dentro dos limites do destino. Epicteto(8) dizia que o escravo tem a liberdade, pelo menos no seu interior, de dizer não. O mesmo ocorre com O, que é uma mulher livre e se vale da liberdade para se converter numa escrava.
BM: Cabe perguntar se O teria podido dizer que não queria ser escrava ou, em outras palavras, se ela teria tido a possibilidade subjetiva de escolher a posição de quem não é escrava.
PAZ: Sim, poderia ter recusado o amor. Falei algumas vezes com Paulhan sobre isso. No meu livro sobre Sade(9), eu desenvolvo a ideia. O livro se chama Um mais além erótico: Sade, e também acaba de sair pela Gallimard. Contém um poema e dois ensaios. A parte final trata da História de O. Creio que O escolhe a servidão porque está apaixonada. Todos os apaixonados, no fundo, seguem O, na medida em que todos aceitam a servidão. Na poesia provençal, que codificou o amor, se diz que o apaixonado é um vassalo e a amada é uma senhora. Mas o apaixonado decidiu se converter em vassalo, por estar apaixonado, ele não nasceu escravo. A origem de O se encontra na poesia provençal. Se O fosse somente masoquista, ela seguiria suas inclinações eróticas e ponto final, mas ela está apaixonada…
BM: : O senhor não acha que o amor implicaria uma revisão completa da noção de escolha?
PAZ: Sim, porém o amor lança luz sobre a relação entre necessidade e liberdade, sobre o livre-arbítrio, o grande tema do teatro espanhol.
BM: O amor move o sol e as estrelas, mas não se dissocia do ódio e pode se tornar mortífero. Por que o senhor só fala do amor como um bem?
PAZ: Mencionam com frequência o caráter mortífero do amor. Possivelmente, eu falo dele sobretudo como um bem por reação contra essa predileção do século XX, predileção pelos lados negros do amor. Trata-se também de uma reação contra a exaltação do Marquês de Sade… Mas eu penso que o ódio é inseparável do amor.
BM: Existe mesmo o conceito de hainamoration, em Lacan(10).
PAZ: O quê?
BM: Hainamoration, um neologismo que junta o ódio (haine) e o amor (amour).
PAZ: Os psicólogos dizem de modo mais ou menos pedante o que os poetas dizem de forma simples. Catulo(11) diz num poema famoso: “Amo e odeio ao mesmo tempo / Por quê? / Não sei, / mas eu disso padeço”. É magnífico, em quatro versos, diz o que os psicólogos e os psicanalistas precisam de mil páginas para dizer.
BM: (Risos) O senhor diz, no seu livro, que o amor é incompatível com a infidelidade. Isso significaria que a revolução erótica deste século(12) não mudou em nada a noção tradicional de infidelidade?
PAZ: A revolução erótica nos trouxe uma ideia mais limpa do corpo… O amor não existe sem a liberdade feminina. Por isso, desde sempre, os grandes períodos do amor coincidiram com a liberdade da mulher ou com a sua rebelião. Afinal de contas, Isolda se rebelou, Julieta também…
BM: Voltando à questão anterior, eu lhe pergunto se um simples encontro erótico é um ato de infidelidade.
PAZ: Sim, em geral sim, porque o amor está fundado na união do corpo e do espírito. No passado, havia o problema da paternidade. Hoje, a infidelidade é menos grave, porque não interfere na procriação, mas o amor parte da decisão de que “iremos juntos até o final”.
BM: Será mesmo que a revolução erótica não implica que possa haver fidelidade do espírito e liberdade do corpo?
PAZ: Parece complicado. As experiências dos que tentaram esse tipo de amizade amorosa não deram certo. É muito difícil evitar o sofrimento do companheiro. A infidelidade, em si mesma, poderia não ser grave, mas fere profundamente o outro. Isso, todos nós sabemos pela experiência.
BM: Os autores árabes celebram os amores castos. Qual a diferença entre a erótica árabe e a platônica?
PAZ: A ideia da castidade é muito antiga. No Oriente, nasce do conceito de que toda descarga sexual implica perda de vida. É preciso ser casto para conseguir mais vida. A castidade é uma receita de imortalidade. No taoísmo e na ioga(13), a castidade existe para que o sujeito tenha mais controle sobre si mesmo. No caso de Platão, a castidade está ligada ao dualismo do corpo e da alma e à necessidade de salvar esta última. Cada ato sexual, para ele, é uma queda no mundo informe da matéria. Nós amamos uma forma; porém, no momento em que a abraçamos, ela se dissolve. Isso, para mim, é maravilhoso, porque é um contato com o universo.
BM:O senhor escreve que a maior defesa contra a Aids é o amor, por implicar a fidelidade. A sua posição é a do papa.
PAZ: Possivelmente. Mas D. H. Lawrence(14) já dizia que o papa sabia mais de sexo e erotismo do que os tratados todos.
BM: Segundo o seu livro, o último grande movimento estético do século XX teria sido o surrealismo, e o movimento beat(15) foi uma derivação daquele. Seria possível explicar isso?
PAZ: Toda a doutrina da beat generation parte da espontaneidade da escrita, que é uma ideia dos surrealistas.
BM: Obrigada pela entrevista.
PAZ: Você quer tomar um café?
BM: Aceito.