O Zé Celso de Os Sertões
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, é uma coletânea dos artigos “Com
‘A luta’, Zé Celso ensina que a sabedoria é um dom interior”, Folha de
S. Paulo, 14/05/2005; “Festival na Alemanha abraça a doçura
orgiástica de Os sertões“, Folha de S. Paulo, 7/06/2004; “Espaço
comemora data com a diversidade”, Folha de S. Paulo, 3/10/2003;
“Conselheiro vive seu evangelho trágico”, Folha de S. Paulo, 3/11/2003;
“Com ‘Os sertões’, o Oficina funda o TBI”, Folha de S. Paulo, 7/12/2002
Você ouve um tambor. A peça vai começar. As portas do teatro se abrem. São azuis. Oficina Paraíso, Teatro Oficina. Os atores de branco vêm te buscar. Dançando e cantando. Você dança também e entra com eles, já transformado em personagem da peça, já tomado pelo drama de Canudos. Antes de tudo, é preciso respirar. O público zen respira e vê o chão de cimento coberto de areia. Com isso, se transporta para o sertão.
Bate tambor. Com Marcelo Drummond, você repete: “Hop, hop, hop, ho o o”. Até ele entrar no papel do narrador e dizer: “Os Sertões foram escritos por Euclides da Cunha nos raros intervalos de folga… Irritam-me as meias-verdades que não passam de mentiras… Autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma… Quero ser bárbaro entre os bárbaros. Antigo entre os antigos”. Com isso, expressa e assume a estética do Oficina, que quer a alma do texto e ganha, porque faz bater o coração.
A TERRA
Você ouve a língua suntuosa de Euclides. Possível que alguém tenha ousado escrever “ciclópicos coliseus”? E você redescobre, graças ao Oficina, que o tesouro da língua está acima de tudo. Graças a este Teatro Brasileiro da Inclusão, o TBI, onde as meninas e os meninos lindos do Bexiga rebolam dizendo em alto e bom som as palavras de Euclides da Cunha. A universidade baniu a literatura, o teatro a incluiu e vai educar. Qua, qua, qua. Banana, meu bem. Oh yes, nós temos bananas pra dar e vender. Temos uma farândola que nem o Fellini do Oito e Meio ousou imaginar. Aqui em Tão Paulo, no sertão do teatro, onde os atores e as crianças vão dizendo: “amplitudes dos Gerais, maciço continental…”. Aqui, ó, pra língua pobre da internet.
E você chega no Vaza-Barris, à margem do qual se encontrava a comunidade de Belo Monte. Você vê no palco do alto, no da esquerda, Euclides da Cunha surgir, Marcelo Drummond vestido de terno e chapéu preto, rosto pintado de branco. Porque era preciso ser branco para falar da terra e do mestiço, como Euclides falou. Ser formado como um doutor, como a alemã que entra em cena lendo Os Sertões em alemão. Para você lembrar que o livro existe em muitas línguas antes de ouvir:
— Nenhum pioneiro da ciência suportou o sertão, sempre evitado, até hoje desconhecido…
O quadro que se segue (porque a peça só é teatro sendo pintura) é o de Euclides da Cunha na frente do Conselheiro. Face a face. Daí por diante, os dois vão se espelhar. Como na vida real. Um e outro traídos pela mulher. Nesse espelhamento, o Conselheiro pede o fim da maldição de que é vítima o sertão. Pede visualizando Monte Santo. E o tema agora é o Vaza-Barris, que também fala, claro. Fala a terra, fala o rio, como as árvores e as flores falarão. Todos são personagens, como todos os atores são narradores. Para que Os sertões sejam definitivamente apropriados, e você ouça que ali reinam “calmarias pesadas, dias causticantes”.
Fins de setembro, 1897. Euclides percorre as cercanias de Canudos, e o senador Eduardo Suplicy, que está entre os espectadores, ouve e lê atentamente o livro. Subitamente, aparece o primeiro personagem da tragédia: um soldado que há três meses descansa. Um morto. E agora são dois Euclides da Cunha que você vê em cena. Porque, se o escritor não se desdobrasse, ele não escreveria. Há sempre dois, um que vive e outro que observa.
O morto, os cavalos mortos “como espécimes empalhados de museus”. São cavalos como animais fantásticos sobre um chão onde “cada partícula de areia irradia a combustão da terra” e Antônio Conselheiro pisa, vestido exatamente como Euclides da Cunha, segurando uma mala prateada nas mãos.
Fala do mal de não ser amado, da dor de corno e da jura de não matar ninguém. Por isso, aliás, ele deixou a “civilização”. Vários atores vão encarnar o Conselheiro e contar a história do seu renascimento de cajado e lençol branco no sertão. Você ouve repetidamente a palavra “caatinga” e descobre como ela é linda. A palavra feito nota musical. Euclides se aproxima do Conselheiro enquanto Zé Celso, que também é escritor, olha. Você olha o Zé, que olha Euclides (Marcelo), que olha o Conselheiro. Todos no corredor.
Globe Theater para Shakespeare lá na Inglaterra. Aqui, é Teatro do Corredor. Igualmente maravilhoso. Nele, você também vê o céu, enquanto as pessoas vão virando árvores e os atores vão cantando as bromélias.
Zé Celso é um educador. O que ele ensina é o Brasil, sem nunca ser nacionalista. Vem que tem e ele inclui todas as músicas no ato de romper com as convenções, fazer pouco de Hegel que logo mais vai aparecer. Aguarde. Ouça antes o que os atores dizem sobre “as flores rutilantes quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens”. A flora é estranha, diz o narrador, capaz de assombrar o maior dos botânicos. Euclides diz que se perdeu, nunca lamentou tanto a falta de uma formação prática, formação que o ensinamento acadêmico não deu e não dá. Você sorri para o Brasil, fica orgulhoso de ter nascido aqui.
Por que o Zé quase não entra em cena? Só entra de vez em quando. Porque ele já é o ancestral dessa grande festa que não vai acabar depois dele. Fica meio dentro e meio fora para que o Oficina continue. Para que o ator, molhado por uma súbita chuva, se meleque rolando na areia e você deseje se molhar e rolar também. Um teatro que é sagrado e é alegre, onde a valsa toca no sertão. Quem disse que não? Foi Hegel? Qua, qua, qua. E quem então dança é o umbuzeiro, a árvore sagrada do sertão-paraíso trágico do Brasil.
Entra uma seriema “sem prosa, lamentosa”. Você escuta o seu canto triste antes de ouvir que “num ritmo maldito as folhas vão se despegando”. Prenúncio da seca. E quem entra no palco é Hegel, de guarda-chuva e capa preta. Diz para Euclides:
— O senhor não classificou esta categoria geográfica. Só é real o que é racional e vice-versa.
Ou:
— Os homens têm que abrir mão do que não se encontra nas categorias racionais. Sei bem que vocês pisam nessa terra, só que ela não existe.
Ora, Hegel!
— Sou promíscuo e quero ser barbaramente estéril, maravilhosamente exuberante —, responde o sertão.
Guerra de foice, antes de entrar em cena o outro agente geológico notável, que Euclides havia esquecido de mencionar: o homem.
E a peça culmina. Você assiste ao rito do homem nu, o índio que apaga o fogo com o próprio corpo, as brasas com a sola dos pés. Medo. Será que este teatro não vai pegar fogo? Pega, simbolicamente, com uma foda ao som de um violino. O texto continua:
— …as montanhas que me norteiam balizando a marcha das bandeiras em busca do Eldorado.
A Terra é então simbolizada por uma mulher com quem Euclides fode ao som de uma sanfona. Depois de ter dito: “Adeus, Bexiga”, referência a Silvio Santos1. E os atores começam a apunhalar o chão. Referência também ao drama da terra na modernidade. Mais internacional do que o Zé não existe. Do que nós brasileiros, que comemos alegremente todas as representações. Viva a comilança, o homem que brinca, e não o homem que pode se tornar funesto e dar à Terra “com a queimada um supletivo de insolação”.
No fim, o texto se torna satírico:
— Não vamos fazer miríades de poços artesianos. Vamos continuar as obras do Minhocão.
Pode o Conselheiro não reaparecer? Aparece na porta, encarnado por Zé Celso, vestido de azul, como um anjo, como o céu, e ele pergunta:
— As tuas mãos? Onde estão? —, pergunta e lambuza as próprias num líquido branco, no “esperma do líquen da terra”, oferecido por um índio nu.
Zé Conselheiro sugere que você, espectador, não seja um Pôncio Pilatos. Lambuze, em vez de lavar as mãos. Participe para evitar o massacre. E assim, seguido pelos quarenta atores, atravessa pela última vez o corredor e desaparece nos bastidores. Você fica com a imagem de um ator que leva uma placa onde se lê: RUA CANUDOS. O silêncio é sagrado. Sacraliza até o barulho do trânsito, a rua Jaceguai e São Paulo, Tão Paulo, Tão.
O HOMEM
O “brasileiro típico” é um mito — como é mítica a América Latina. Quem vê O homem, no Oficina, não sai ignorando isso. Saí feliz de saber o quão diferentes nós somos uns dos outros e o quão ricos a diferença nos torna — ela é o nosso tesouro comum. O espetáculo retoma a questão da identidade, dizendo-nos quem somos nós que não cessamos de nos misturar. Só falamos a mesma língua, fazendo-a variar interminavelmente, deixando que ela se contamine pelas outras. Gilberto Freyre, que fundou a sua sociologia na miscigenação, e Mario de Andrade, que bendizia a contribuição milionária de todos os erros, teriam gostado.
Com A terra, o Oficina fundou o TBI, o Teatro Brasileiro da Inclusão, introduzindo as crianças do Bexiga na peça — crianças sem casa, de casas sem número, dos cortiços —, dando voz, através delas, a Euclides da Cunha, ensinando-lhes a grande língua do escritor e a história da nossa formação, além de indicar o caminho pacificador da arte.
O resultado dessa experiência iniciática é o re-nascimento do Oficina em O homem, segunda parte de Os sertões, para um trabalho de ator surpreendente. Com as crianças, os mais velhos também se formaram. Além do já consagrado Marcelo Drummond, no papel de Euclides da Cunha, Ricardo Bittencourt, Fransérgio Araújo, Aury Porto, há vários atores e atrizes cujo desempenho arrebata. Porque são capazes de encarnar com convicção o próprio personagem, capazes de se comunicar com o espectador e de se desnudar em público, como só o ator se desnuda. Por saber que a palavra vergonha não faz sentido no teatro. Que, para ser bom, o ator precisa ser avergonhado. Ou melhor, se tornar avergonhado, como o artista se torna inocente. Noutras palavras, o bom ator, como o bom artista, é aquele que recuperou a inocência perdida, exercitando-se no seu ofício. E a contribuição das crianças do Bexiga foi decisiva para que os mais velhos se aprimorassem. Prova de que a inclusão é o melhor dos recursos.
Como a terra é o maior dos bens. Para o sertanejo e para os sem-terra. Para o Oficina, a cuja história o espetáculo continuamente nos remete, convocando a tomar parte no drama de um espaço cultural ameaçado de extinção desde que ele surgiu.
O homem mostra, mais ainda do que A Terra, que Canudos é aqui. Os sem-terra estão no campo, mas também na rua Jaceguai, no Uzyna-Uzona, que é uma usina de formação e de paz.
O TRANSHOMEM
Antônio Conselheiro vive no Transhomem do Oficina o seu evangelho trágico — o de Os sertões de Euclides da Cunha e o do Sertão-Brasil, que é o Sertão-Mundo. Trata-se do terceiro espetáculo — o primeiro foi A terra; o segundo, O homem.
Em O transhomem, o espectador vai se transformar. Ver um espetáculo que dura sete horas, querendo mais sete no fim. Se for verdadeiramente de teatro, levará suas frutas secas e sua garrafa de vinho para curtir melhor o ritual. Fará o que se fazia no teatro shakespeariano, onde as pessoas comiam e bebiam.
Shakespeare queria que o espectador gostasse e permanecesse no teatro. Por isso, aliás, em muitas de suas peças há trechos que só se justificam pela vontade de agradar a plateia. Com Os sertões, o Oficina se transformou num teatro ainda mais shakespeariano, além de resplandecer como um templo de paz. Evoé, Buda, Gandhi…
O transhumano Zé, no papel de Conselheiro, veste-se de azul e vive a sua saga, indiferente aos perigos, alimentando-se mal, dormindo à beira dos caminhos… Porque compreende melhor a vida pelo “incompreensível dos milagres”. Alega que as conjecturas e as lendas criam um ambiente propício para germinar o seu desvario. Um desvario que mais parece de anjo, quando ele, com uma coroa de folhas, encontra Euclides da Cunha (Marcelo Drummond). Quem sabe da paixão que existiu entre os dois atores — uma paixão que sustentou o Oficina — olha a cena na qual eles se sentam face a face e fica tomado pela aura de paz. Dois anjos se não dois falanjos.
Diante de Euclides, o Conselheiro explica que a multidão precisa de alguém para traduzir os seus anseios indefinidos e os conduzir nos trilhos do céu. O Nordeste sopra o seu vento forte, e os amantes da vida inteira, Zé-Conselheiro e Marcelo-Euclides, dançam embalados pelo vento. Com a idade, Zé Celso só fez rejuvenescer.
De Itabaiana nós vamos com os atores para a vila de Itapicuru de Cima. Depois, para o Rio, para a rua mítica do Ouvidor, onde se anuncia que, no sertão do norte, apareceu um homem que exerce grande influência sobre as massas populares, Antônio Conselheiro. Pouco depois, o homem é preso.
— Quantos anos tem o senhor? Matou sua mulher? Sua mãe? Por que não come? Por que não bebe?
Aquele senhor acaba sendo solto e avança pelo sertão adentro. Ouvimos cantar que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Evoé, Glauber. O Conselheiro é profético e sabe que as águas do mar se tingirão de sangue. A terra se confrontará com o céu. Haverá chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Os sertanejos como os atores, “loucos que a razão não alcança”, sabem da mediocridade das políticas e das falações. Sabem que precisam ser superiores à humanidade, que as fortunas todas estão à beira da falência. Se não estivessem, nós acaso pensaríamos em casas e carros blindados? Os sertanejos fazem pouco dos ricos e querem o amor livre.
Podia a igreja de mitra não entrar em cena?
— Aqui em nossa freguesia anda Antonio Conselheiro enfraquecendo a autoridade. Proibimos o nosso rebanho de ouvir a pregação. Só quem é da igreja pode doutrinar.
O espectador vê, ouvindo atentamente a língua que é a personagem principal da peça.
— Itapicuru, eu sempre volto a tu…
Ouve, vendo atores que são de circo, que se enrolam como cobras nos gradis do teatro.
Em 1888, a princesa imperial sanciona a Lei Áurea e ficam todas as disposições em contrário revogadas. No palco-corredor do Teatro Oficina, tanto aparecem os escravos acorrentados quanto a pomba-gira arrebatadora, Denise Assunção, atiçando com sua voz de fogo a população da São Paulo de 450 anos.
— Ainda que tardiamente, liberta a tua sina.
Denise canta e dança ao som dos tambores. Até que um soldado entra montado num cavalo branco. Nós ouvimos o decreto número um do governo dos Estados Unidos do Brasil:
— Fica proclamada a República Federativa.
A Monarquia está extinta, e o elenco canta “Liberdade, abre as asas sobre nós”.
Renée Gumiel, originária da França, recita Auguste Comte:
— Amor por princípio, ordem por base e o progresso por fim.
Recita em francês, claro, porque foi com o espírito da imitação que a República surgiu. Preparada também para esmagar a menor oposição.
O Conselheiro sabe que vai perder muitos dos seus. Ato contínuo, ergue-se na peça o arraial fortificado. Você olha para o céu de São Paulo, que o teto aberto do teatro deixa ver, e nota as estrelas do sertão. Quer saber mais sobre Antônio Conselheiro, procissão e mutirão…
Mas o vigário entra em cena:
— Irmão, a Igreja não permite que pregueis.
Ele entra prenunciando o auto de fé, a guerra, a vinda dos homens armados, 30, 60, 1.000, 6.000 para matar os rebeldes.
Zé-Conselheiro dá a mão para a menina do Bexiga, menininha do Projeto Bexigão, uma das nossas futuras grandes atrizes. Você que está vendo e acompanhou a história do Uzyna Uzona nos últimos trinta anos percebe que está presenciando um acontecimento novo e decisivo — o de um teatro que foi mil vezes excomungado, mas veio para ficar. Porque fundou o TBI (Teatro Brasileiro da Inclusão) e agora tem um corpo de atores que já não se concebe sem ele. Com O Transhomem, o Oficina se tornou independente do seu diretor, transcendeu o Zé, como o Zé queria. Uma glória nacional que não acaba nunca.
Antes de começar a matança dos inocentes, antes do apocalipse, uma procissão gozosa no teatro ao som de um expressivo violino. Na saída, você lerá no programa que se trata de uma ópera de carnaval e entende por que Zé Celso faz pensar em Joãosinho Trinta, que sempre viu no carnaval uma ópera de rua.
Terminada a procissão, os rebeldes se instalam em Belo Monte e as casas-cabanas se erguem. Trata-se, de acordo com o texto da peça, da primeira favela do país. Construída “na febre de uma noite sem fim”. Uma favela de amor e paz, onde os seios de Patrícia Aguille surgem como faróis e Luciana Domschke se transforma numa vagina vulcânica. Evoé, Pompeia. O teatro vibra com as duas mulheres, com seus corpos tão ousados quanto a língua portuguesa do Brasil. Um oásis no Evangelho Trágico do Conselheiro, do Brasil que briga com o Brasil, do mundo que briga com o mundo.
Segue-se outro rito de celebração do amor, da dor, do humor, e os atores declaram que são jagunços:
— A gente samos jagunço.
Uma esteira se desenrola no chão do teatro para oferecer ao público um banquete de frutas brasileiras. Dois minutos e não há mais uma só fruta. Momento maravilhoso de devoração antes do sítio de Canudos e da destruição da “seita maligna”. Os sabores mais variados para todos e o leite de mandioca. Porque depois será a guerra.
Passaram-se sete horas. Acabou-se o que era doce. Você, que também aprendeu a paciência e já sabe que a luta é inevitável, quer mais. E só sai do teatro porque é imperativo sair.
A LUTA I
Para A luta, Zé Celso faz no catálogo uma dedicatória surpreendente. Evocando quarenta anos de tropicalismo e da influência do “poeta antropófago Oswald” em todas as suas criações, dedica-lhe a peça. Mas também a dedica a Silvio Santos, chamado de “empresário; acima de tudo artista, animador, ator”. Zé Celso faz isso alegando que teve a sorte de contracenar nos últimos vinte anos com Silvio Santos, um dos mais poderosos atores do capitalismo videofinanceiro, antagonista que o inspirou em todos os seus trabalhos. Acrescenta que, se não fosse essa luta na Selva das Cidades, ele não passaria de um artista alienado numa caixa-preta. Mostra, com a sua dedicatória, que superou a paixão do ódio.
Teria valido assistir à peça ainda que fosse só para ver Ricardo Bittencourt nos diferentes papéis que ele encarna: Juiz do Bom Conselho, evocando um morcego na sua vestimenta negra e ocupando com a sua simples presença o espaço todo do teatro; Ricardo Terceiro, que ele é obrigado a encarnar quando se candidata ao papel de Coronel Moreira Sales. Em todos os papéis, a transfiguração do ator é perfeita. Quem viu não pode esquecer.
Como não esquece Patrícia Aguille, maravilhosa no papel de Helena da Troia de Taipa. Raptada por Pajeá, ela é a causa do incidente inicial da Luta. Sua beleza de deusa nórdica — seios dourados, como faróis — foi devidamente exaltada pela dramaturgia. No papel do oficial argentino que violentou o Coronel Moreira Sales, Patrícia exibe com pompa a sua força andrógina, fascinando homens e mulheres. E ela continua a brilhar até o fim, entrando em cena como um glorioso cavalo. Tudo ela faz como o artista deve fazer: como se fosse a última vez.
Teria valido ver a peça, ainda que fosse só para ouvir Adriana Caparelli no papel de Verônica. Sua voz é tão cálida quanto é gélida a sua imagem de mulher envolta num véu negro. As mulheres na Luta são particularmente impressionantes, sobretudo quando aparecem juntas, enroladas num pano que também serve de xador para dar vida à muçulmana de muitas cabeças, figura onírica que nos reenvia ao Oriente de todas as guerras e universaliza Canudos.
Com A luta, muitos atores novos surgiram, anunciando um elenco futuro que será uma multidão. Outros atores novos se confirmaram, como Danilo Tomic, que entra em cena como o General Cunha Matos, arrebatando o público.
Na terceira parte da epopeia, nós alcançamos a meca da grande arte, que se materializa sucessivamente nas cenas mais poéticas — porque, na dramaturgia de Zé Celso, o que interessa não é a co-municação mas a cu-municação, ou seja, o verbo que o corpo traga e vira música, vira canto da sereia. Porque não é a significação que importa, mas o sentido, não é o conhecimento, mas o cu-nhecimento, o saber que passa pelo corpo, a sabedoria. Na tradição da nossa cultura popular, Zé Celso é um budista brasileiro, e a sua peça evoca um dos ensinamentos do Buda: o de que o conhecimento se toma emprestado dos outros, enquanto a sabedoria é interior, é sinônimo de experiência, e não de informação.
A LUTA II
Em todas as partes de Os sertões, há motivo de sobra para se surpreender e se maravilhar. Todas incitam a ler ou reler o livro de Euclides da Cunha, que, graças ao trabalho incansável de Zé Celso e de seus atores devotos, ganhou um estatuto novo: o do grande livro da cultura brasileira da mestiçagem, equivalente para o Brasil do que é o Ulisses de James Joyce para a Irlanda.
Trata-se, no segundo ato de A luta, do ataque ao portal das luzes das Cunanãs. O Withworth, o canhão com o qual o sino da igreja de Canudos será destruído, precisa passar!
Como em A terra, O homem e no primeiro ato de A luta, as cenas são quadros pintados pelo diretor e pelos atores, com a direção de um e a interpretação dos outros. Uma direção que libera o ator, ensina-o a dizer o texto a partir da música e aponta na atuação o seu gesto mais expressivo. Uma interpretação que supõe a sensibilidade para captar, através do ritmo e das palavras, a fantasia cênica do diretor. As imagens que resultam desse trabalho, em que o diretor é tão dependente dos atores quanto estes dele, são arrebatadoras como as imagens dos cineastas, cuja referência é a pintura. O teatro de Zé Celso também é cinema, além de ser ópera. Sobretudo, não se limita ao que se convencionou chamar de “teatro”, porque antropofagicamente devora os outros gêneros. Como a pintura de Picasso, que devorou a escultura antes que o pintor se tornasse também escultor.
Entre as grandes cenas deste ato de A luta, está a da personagem encarnada por Ricardo Bittencourt, Bahia Eulâmpia, que, abrindo a saia do parangolé, abriga as tropas do Brasil inteiro, recebe-as com os braços abertos, mas também com as pernas, tirando sarro dos republicanos. De quem não sabe que “o Brasil sem axé, sem magia, sem poesia é puro besteirol”.
Bittencourt é a própria figura da sedução. Nem homem, nem mulher, quase travesti. A presença da mãe de santo e a sensualidade da pombagira. Generosidade e volúpia. Entra em cena no seu novo papel para ficar como um mito, símbolo do teatro orgiástico que Zé Celso cria e recria, lembrando-nos de que o teatro nasceu da orgia, e os seres, com a sua falta e a sua fissura, são mais vitais.
Outra cena inesquecível é a da formação da primeira coluna comandada pelo general Arthur Oscar, personagem a que Fransérgio Araujo dá força com a sua brasilidade e uma voz que ressoa no teatro inteiro, convocando os homens “para legar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada”. Contracena com ele, no papel de Alferes Wanderley, Haroldo Ferrari, cuja interpretação dá relevo ao texto fazendo-nos ouvir as suas nuances. Porque ele é um ator-poeta. Marcelo Drummond, como Euclides da Cunha, está no seu melhor momento. Tão ligado ao papel de escritor quanto Zé Celso ao de Conselheiro. Talvez por ter dirigido O assalto, por ter tido a experiência de diretor.
É em A luta que as atrizes do Oficina melhor se revelam. Porque já são mais de dois anos de atuação nos Sertões e o elenco pode se formar com o trabalho? A já consagrada Luciana Domschke encarna a Terra, a médica e a mulher, para evocar com seu corpo farto e maneiro a origem do mundo. Ana Guilhermina, por sua naturalidade, parece ter nascido para o palco do Oficina e o papel de cantadora zabaneira perguntando:
— Ninguém trepa? E o tesão?
Seu titilar de língua é tão inesquecível quanto o seio que desponta no decote do vestido.
A atuação de Camila Mota no papel de Cabo Stanislawski é particularmente convincente. Patrícia Aguille encarna com garra o funesto Withworth.
O elenco todo é bom, além de bonito. Formados no credo oswaldiano do pensamento ávido da totalidade, do humor e da vertigem, os atores do Oficina são únicos. Estão preparados para fazer o público entender que as tropas, sejam elas quais forem, rumam sempre para a morte. Com eles, o diretor conseguiu fazer da história real de Canudos uma história metafórica e universal.
Prova disso é o sucesso de Os sertões na Alemanha. Primeiro em Recklinbghausen, que fica no coração da indústria militar alemã e produziu as armas utilizadas na guerra de Canudos. Nesse lugar, para apresentar Krieg im Sertao, o produtor reconstruiu o espaço do Teatro Oficina tal como ele foi concebido por Lina Bo Bardi. Depois, em Berlim, onde Zé Celso brilhou como diretor lendário de um teatro-mensageiro de que o mundo precisa.