O valor da amizade

O valor da amizade

Revista Veja, 23/12/2009

A mesma palavra tem significados diferentes em função do texto ou do discurso em que figura. A importância disso é capital pois significa que, para interpretar uma palavra, precisamos nos debruçar sobre o texto ou escutar verdadeiramente quem a profere. Do contrário, ouvimos sem entender. O ensinamento básico de Freud é este e bastaria para justificar a Psicanálise, se isso ainda fosse necessário.

No entanto, a maioria das pessoas não se dispõe a escutar. Poucos nascem com esta capacidade, que pode e precisa ser desenvolvida. Escutar é um ato generoso. Implica que eu deixe momentâneamente de falar e esteja aberto para o que o outro tem a dizer.

A escuta é a característica do psicanalista e também do amigo, que sabe não impor a sua presença, não dizer o que não deve ser dito para que o encontro corresponda ao esperado e a amizade floresça. Noutras palavras, ele sabe se conter, exercita-se na ética que o Dalai Lama preconiza, a ética da contenção. Precisamente, por isso, o amigo é de paz e a sua maneira de ser pode servir de modelo para todas as outras relações: marido e mulher, pais e filhos, irmãos…

O que Xenofonte escreveu cinco séculos A.C, podia ter sido escrito hoje: “Um bom amigo é o mais precioso de todos os bens. Está sempre pronto a auxiliar… No entanto, há homens que investem toda a sua energia no cultivo das árvores para colher frutos e se ocupam com negligência do amigo, o mais produtivo de todos os bens.” O amigo vê e ouve o que não somos capazes de ver nem ouvir. Assim sendo, pode fazer por nós o que não temos como fazer por nós mesmos. Como o analista, ele ilumina o caminho.

Sabe suspender o seu desejo para que o do outro se manifeste. O que ele mais quer é o acordo. Está menos interessado nos eventuais benefícios materiais que a amizade pode trazer do que no fortalecimento desta. Visa sobretudo o contentamento do amigo e não deve ser confundido com o cúmplice, que visa o próprio interesse e se liga ao outro em função do que almeja alcançar.

O elo de cumplicidade tende a ser efêmero enquanto o de amizade é para sempre. Noutras palavras, o amor dos amigos nunca é de agora e sim para a vida inteira. Também por isso, há três milênios, a amizade inspira os escritores, que se perguntam de que modo escolher um amigo, quais as características de um amigo verdadeiro e o que nós a ele devemos. Os escritores sabem que a amizade nasce espontâneamente, mas só dá os seus melhores frutos se for cultivada.