O universo é aqui mesmo

O universo é aqui mesmo

 

Claudio Willer (1)

Em 1996, a escritora e psicanalista Betty Milan publicou Paris não acaba nunca, série de crônicas sobre a capital francesa que teve sucessivas reedições e vendeu dezenas de milhares de exemplares. Com este recém-lançado quando Paris cintila, sugere a continuação daquelas prosas poética pontilhadas de referências literárias.

Mas é de Paris que trata o novo livro da autora de Fale com ela? A maioria das 33 crônicas que compõem o livro se passa ou foi escrita na capital francesa. Na primeira, um vitral cintila na catedral de Notre Dame (daí o título do livro) e um arabesco torna presente o Oriente. A segunda também é parisiense: em uma biblioteca do bairro onde mora, Betty conversa com outro consulente, e “a referência a Proust nos faz passar de um lugar real a um lugar imaginário (…) onde tudo é reconhecimento”: sente-se estranha, estrangeira nessa tarde e nesse lugar; uma experiência universal, e não apenas parisiense. Na terceira, encontra na Rue des Archives a cantora argentina que vai interpretar um tango em Dunquerque, Norte da França. Mas, a seguir, está em Oslo, Noruega. E o leitor ainda a acompanhará a muitos lugares: uma mesquita em Istambul; ramblas de Barcelona; à Grécia, em Tessalônica, onde registra contrastes entre detritos contemporâneos e ruínas históricas. E à China da Praça da Paz Celestial em Pequim e também a da rota da seda em Dunhang, no deserto de Gobi, e a dos monges ascetas em Xiahê; à Índia da exacerbação dos contrastes; a Nova York; ao Brasil do sincretismo nas imagens em São João del Rei e Outro Preto e de mais um reencontro com a criação artística na Praia do Forte, Bahia; a São Paulo, sua cidade natal.

A que propósito, no meio de tantos roteiros, Betty Milan fala de suas dores na coluna? Talvez para sugerir que a viagem pelo mundo também é uma viagem pelo próprio corpo. Que o corpo é universal, assim como a morte, tema explícito em duas das crônicas, e sugerido nas demais, inclusive naquela sobre a vida longa de ascetas chineses. Também é universal a criação: para Hemingway, a primeira frase de um texto é decisiva; para Confúcio, como aprende em uma palestra no Museu Guimet em Paris, é o primeiro traço que define a caligrafia do ideograma. Terão esses registros alguma relação com o conceito de belo, como (citando Yamamoto) “o objeto que deixa exposta a imperfeição?

Há uma estética, uma poética e uma filosofia mostradas através dessas experiências em lugares tão distantes entre si. Desde a primeira das crônicas de quando Paris cintila, na qual o brilho do sol no vitral e o arabesco tornam presente o Oriente e a arte, sempre há um particular, um detalhe, uma percepção de algo que remete ao universal. Todas tratam de algum lugar, cena ou situação, e também de outra coisa: o amor, a morte, a sensação de estranheza e seu inverso, o reconhecimento no detalhe em um lugar desconhecido. Focalizam o mundo objetivo, das coisas; o da subjetividade, emoções, sentimentos, evocações e insights do narrador; e os momentos em que os dois planos, da subjetividade e do mundo objetivo, se tocam ou confundem. É quando, diz, “a realidade pode ser vista como uma cena onírica”.

A confusão dos dois planos, do sujeito e do objeto, é típica da filosofia romântica, tal como expressa neste fragmento de Novalis, o poeta-filósofo alemão: “O que é a natureza? Um índice enciclopédico sistemático ou plano do nosso espírito”. E das experiências místicas: por isso, alguns desses fragmentos de relatos de viagens pelo mundo sugerem vertiginosas aproximações àqueles monges e ascetas que se isolam do mundo em favor da vida contemplativa. Conhecer lugares é, de modo bem evidente, ocasião para conhecer-se. É o que já declara na frase inicial: “para ir bem longe, não é preciso caminhar muito”. E reitera adiante: “Não é preciso sair do lugar para ir à China”. Um paradoxo aparente: ao relatar experiências de viagem em quatro continentes, Betty Milan convida o leitor a olhar a seu redor; a olhar-se e enxergar-se para ver o mundo; ou a descobrir-se em seu mundo.

Quando Paris cintila é fragmentário, com seus flashes, cenas de viagens e registros de momentos de insight. São as cintilações do título: seu conjunto forma um caleidoscópio. Todas essas descrições de cenas e lugares e esses relatos de experiências, sensações e emoções caberem em 33 crônicas é um exercício da síntese. Mas o que sugerem, convidando o leitor a preencher os espaços vislumbrados através delas e entre elas, é um universo.

_____
1. Claudio Willer é poeta e tradutor de poesia, além de editor, juntamente com o poeta Floriano Martins, da revista literária virtual Agulha. Artigo publicado em Estado de Minas, Belo Horizonte, 12/04/2008.