O tabu da morte
Revista Veja, 09/09/2009
O amor e a morte são os dois grandes temas da vida. Sobre o primeiro eu recebo muitos e-mails na coluna da Veja.com. Sobre o segundo, raramente alguém me envia um. Corro o risco de escrever sobre ele aqui porque, mais dia menos dia, todos nós confrontamos com o fim.
Entre nós ocidentais, o tema da morte é um tabu. Erguemos um muro entre os mortos e os vivos, como se assim púdessemos afastar a morte. A palavra de ordem é não falar dela. À diferença de nós, os povos primitivos têm o culto dos ancestrais para entrar em contacto com o falecido, no intuito de reverenciá-lo ou se fazer ajudar por ele. O morto é integrado no mundo dos vivos, que se separam dele sem perdê-lo. Era inclusive afim de que o parente morto não se decompusesse, que os índios brasileiros praticavam a antropafagia. Nada para eles era pior do que a imagem do cadáver se decompondo na terra.
Na falta de um culto dos ancestrais, o recurso que nós temos para superar o drama da morte é a rememoração. Perder o ser amado não significa deixar de tê-lo. Graças à memória, ele pode ficar conosco. Fazer o luto é entender isso. Implica tempo e um trabalho subjetivo que leva à consolação. O chamado “trabalho de luto”, no linguajar dos psicanalistas.
A morte tem que ser desdramatizada para que nós possamos sobreviver a ela e não desperdiçar o tempo que nos resta. Já no século XVI, Montaigne, que refletiu sobre todos os temas de interesse, diz nos Ensaios que é preciso não estranhar a morte, incitando o leitor a se acostumar com ela porque “como não sabemos onde ela nos espera, é melhor esperá-la em todo lugar”. Para Montaigne, essa é a condição da liberdade.
Acostumar-se com a morte não significa se preocupar com ela. Nada é pior do que viver angustiado diante da ideia de não poder conservar o ser amado até o fim dos tempos. Quem vive assim, fica infeliz antes da hora. Preocupar-se com o futuro significa perder o presente, deixar de gozar a vida. Temer a perda é como perder.
Carlito Maia, que foi sobretudo um filósofo popular brasileiro, costumava dizer que de nada adianta se preocupar com um problema. Temos que nos ocupar dele e ponto. Porque ocupar-se é uma forma de superar o problema, viver. Preocupar-se, ao contrário, é uma forma de se enterrar em vida, morrer. Talvez por causa dessa ideia, ele tanto sabia ser leve quanto solidário. Valia-se da sua posição prestigiosa na TV Globo para exercer o flower power, celebrar os eventos culturais da cidade enviando flores com bilhetes inesquecíveis. Não está mais vivo, porém graças ao seu espírito, continua entre nós. O escritor vive para escrever, Carlito Maia viveu para merecer a palavra saudoso.