O sexophuro, de Betty Milan: o mito da mulher liberada

O sexophuro, de Betty Milan: o mito da mulher liberada

 

Roberto Yutaka Sagawa (1)

P: Por que o título O sexophuro?
BM: Trata-se de um neologismo que me ocorreu, vendo a palavra “saxophone”, escrita à moda antiga. Ficou sendo, então, sexo e furo com ph para evocar o puro e o impuro, dois adjetivos usados ao se qualificar a mulher, que desde sempre é objeto de veneração ou nojo. É santa ou puta.

P: Sendo psicanalista, o que te levou a escrever uma novela?
BM: Essa pergunta é tão lógica que é difícil de responder, mas vou tentar. De uma coisa tenho certeza: foi a própria análise que me levou a isso. O que não tive como dizer na análise se impôs na escrita. Foi um jorro incessante e incontido de 800 páginas, 10 a 15 por dia, e depois, obviamente, levei muito até decifrar a novela nesse manuscrito original. Acho que esse jorro era um efeito do que a teoria psicanalítica chama de “recalque originário”, isto é, algo que não pode ser dito, constituindo-se o limite de toda análise.

Agora, passar daquela compulsão inicial à novela propriamente dita é que foram elas. Diante de mim, havia um calhamaço que [eu] suspeitava se tratar de um texto de ficção. Comecei tropeçando, errando, sem saber quando nem onde ia parar. Só depois, antes de começar a reescrever, é que decifrei o texto. Levei um tempo enorme para chegar à segunda versão; só na terceira me reconheci como autora. Só pude ir em frente por ter acreditado no saber do inconsciente.

P: E o ensaio?
BM: É um gênero em que me exercito até hoje e de que gosto. Mas no ensaio há limites que só se pode franquear através da literatura. Só ela dá lugar ao não-senso, ao enigma, e aí está a questão fundamental do ser. Talvez por isso Lacan tenha dito que quanto mais se é poeta mais se é psicanalista.

P: Do que trata o livro?
BM: De uma mulher e do percurso que ela faz para deixar de ser objeto e se tornar sujeito da sua história. A personagem não vê saída para si no casamento e só se realiza através da escrita, escapando à vergonha de dizer, ousando exprimir as suas fantasias e se entregando ao próprio desejo no ato de rememorar a sua existência, a infância, a adolescência, os vários momentos em que se descobria através do corpo e do gozo. Pouco se sabe sobre corpo e gozo, e a história concreta de cada mulher passa por ambos. Na infância, o sexo que existe para a menina é o do menino. É nele que se realiza a imagem do corpo feminino pela negação do que lhe falta. A puberdade é uma espécie de desmentido da infância, e o corpo feminino se descobre na vergonha de não ser masculino, na pedrinha do mamilo, nas regras – tudo contrariando as fantasias da menina. Enquanto dura a virgindade na adolescência, trata-se de um corpo interditado, descoberto através do amor e das promessas de um gozo que se adia e só se vive através da boca, dos seios, das pernas, jamais do hímen. Depois, é o gozo da insaciedade ou o orgasmo.

P: A protagonista da novela é uma mulher liberada?
BM: A personagem da novela é antes uma mulher que se encontra a caminho da liberação, questionando as certezas a ela impostas e correndo o risco de se perder para não renunciar à tentativa de se conhecer através do próprio desejo.

P: E o que você descobriu através da novela?
BM: O sexophuro continua a ser um enigma para mim, mas com a personagem aprendi alguma coisa sobre a identidade feminina. Aprendi a renunciar à fantasia de uma identidade dada de uma vez por todas, aceitando que a identidade está sempre por se dar. Além disso, me autorizei a falar do gozo feminino, das fantasias através das quais a mulher descobre o corpo e da Outra, que é a ideia fixa da personagem. A Outra continua sendo uma figura insistente entre nós brasileiros, que ainda vivemos no gosto da rivalidade, na paixão do ódio pela Outra, a mesma paixão presente em toda a obra de Nélson Rodrigues.

P: Qual é a diferença entre gozo e orgasmo?
BM: Sendo o limite da experiência do gozo, o orgasmo nada tem a ver com a tentativa de identificá-lo ao gozo. A tentativa de reduzir o gozo ao orgasmo, além de abrir para a sexologia uma nova frente de trabalho, exerce sobre o corpo o controle requerido pela produção. Fazer do orgasmo um sinônimo do gozo é pôr um fim nele. O gozo só se realiza num tempo que é contrário ao utilitarismo social. O orgasmo tornou-se sobretudo uma palavra de ordem da publicidade a serviço da eficácia social, que não deixa estar o gozo por sabê-lo incontrolável.

P: Qual sua opinião sobre a sexologia desenvolvida recentemente?
BM: Há na Sexologia uma substituição da repressão sexual por uma sexualidade programada. De repente, você vê pessoas sentindo-se na obrigação de ter tantas relações sexuais, tantos orgasmos, ou ainda de ter tantos parceiros diferentes por semana ou por mês. Quero frisar bem o seguinte: é preciso liberar a sexualidade das amarras de um programa, pois, em matéria de sexo, cada um é um.

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(1) Roberto Yutaka Sagawa tem formação em psicologia, antropologia e psicanálise, sendo professor universitário. Revista Psicologia Atual. Arte & Vida. p. 46 e 48.