O sexo não é inócuo
Revista Veja, 30/06/2010
Lembro sem saudade de maio de 68 que Paris exportava e nós paulistas secundávamos na Universidade de São Paulo, e, mais particularmente, na Maria Antonia, onde tomamos as salas de aula para os nossos propósitos libertários e o sexo rolava solto. Aquele maio não foi só uma festa, foi também o aborto clandestino ou a doença venérea que o ginecologista diagnosticava, dando graças aos céus que a penicilina existia. «—Comece a tomar imediatamente».
Nós endeusávamos o gozo, como os hebreus o veado de ouro. Éramos contrários ao materialismo, mas servos do sexo e do êxtase que ele nos propiciava. Sem saber, confundiamos o apego ao gozo com a liberdade. Não sabiamos e nem queríamos saber, pois, depois de séculos de repressão, a liberação sexual era urgente. Nós éramos “revolucionários”, e, nenhuma consideração contrária aos nossos propósitos, nos interessava.
A possibilidade de nos satisfazermos sexualmente como bem entendêssemos era o que mais desejávamos. E, sendo jovens, além de revolucionários, não estavamos em condições de avaliar o lado negativo do nosso culto ao deus gozo que, nem a Aids, conseguiu abalar. Poucos são os que adotaram logo as medidas preventivas recomendadas e muitos os que fizeram pouco delas. Inclusive médicos e psicanalistas. Testemunhei o descaso com horror.
O sexo não é inócuo, não é propriamente um cordeirinho do bom pastor, e a liberdade conquistada nos anos sessenta impõe o não ao outro e a si mesmo. Ou seja, para que a sexualidade não seja uma negação da vida, a liberdade impõe a contenção. Quando não há mais proibição externa, cabe a cada um colocar o limite para o outro e para si. Não é fácil porque não somos educados para nos conter. Pelo contrário, a sociedade em que vivemos incita à desmesura. O que é a fat misery, a que estamos cada vez mais expostos, se não uma doença da sociedade de consumo? Nos Estados Unidos a fat misery é hoje um problema social grave.
O controle da pulsão a gente aprende na infância. A propósito disso, Montaigne escreveu nos Ensaios: «… os nossos maiores vícios se originam na mais tenra infância e a orientação do nosso caráter está principalmente nas mãos da babá. As mães consideram um passatempo ver a criança (…)ferir brincando um gato ou um cachorro. Certos pais são tolos a ponto de considerar que o filho bater(…) num criado é o feliz sinal anunciador de uma alma marcial e que, enganar o companheiro, sendo maldoso e desleal, é um sinal de inteligência» Ou seja, a educação sexual começa bem antes da sexualidade despontar e a valorização do descontrole da criança é um crime. Os pais podem inclusive ser responsabilizados pelo apego desmesurado do filho ao gozo, cujas consequências são sempre danosas, e, às vezes, letais.