O que é o amor II

O que é o amor II

 

1 – Na introdução feita para a edição definitiva de ‘O que é o amor’, você diz que “o vento libertário de Maio de 68 ainda soprava nos anos 1980”. Como está esse vento hoje? Ou está mais para brisa?

O vento libertário não deixou de soprar. Não tem volta. O problema é que as pessoas não sabem o que fazer com a sua liberdade. Confundem liberdade sexual com liberdade, que supõe a possibilidade de dizer não, ou seja, de escolher. Nós não somos educados para ser livres, só para obedecer. Por isso a transgressão é tão valorizada e o assédio é tão frequente. Só os homens livres podem aceitar a liberdade feminina e só eles são capazes de amor. O verdadeiro amor sempre foi uma joia rara. Requer a generosidade e suporta a espera. Um bom exemplo disso está na Odisseia. Penélope espera Ulisses, durante toda a errância dele, espera castamente.

 

2 – O amor ou a forma como amamos mudou? Hoje valorizamos mais o sexo? Por que você diz, no livro, que o sexo é “ uma forma de interditar o amor, fazer de nós puritanos ao contrário”?

O amor implica compromisso, o sexo, não. Como diz a Rita Lee, o amor é um livro, sexo é esporte. Nós, hoje, somos mais imediatistas e consumistas do que nunca, mais propensos a valorizar o sexo independentemente do amor.  Para o gozo sexual, é possível ter mais de um parceiro. Já no amor é diferente. O amado é um ser único, ele é um outro que não é inteiramente outro, no qual eu me espelho. O puritanismo, ao contrário, diz respeito à obrigação de transar, que surgiu com a revolução sexual dos anos sessenta. O  puritanismo interdita o sexo. O contrário da interdição é a obrigação. O difícil mesmo é ser livre. Isso implica suportar a solidão.

 

3 – O amor é indissociável do sexo?

O sexo entre os que se amam verdadeiramente é a maior fonte de contentamento. Freud  diz isso  e não há como discordar. Agora, o amor platônico existe e o sexo pode ser contrário a ele. Conto no meu livro a história de  Baudelaire, que tem uma concubina, chamada Jeanne, mulata viciada no álcool e nas drogas, “um inferno”. A mulher que ele cultua se chama Apollonie, uma loura amiga das letras e das artes. Sem revelar a sua identidade, Baudelaire envia poemas e bilhetes para Apollonie. Trata de mui bela, mui boa e mui cara, Anjo da guarda, Musa e Madona, celebra o amor ideal, desinteressado e respeitoso. Durante cinco anos tudo se passa anonimamente. Até a  publicação  de As flores do mal, um livro de sucesso e provocador de escândalo. No livro, estão os poemas que Baudelaire enviou para Apollonie, que se entrega a ele. O fracasso do poeta é completo, assim como a decepção — “… há alguns dias”, escreve ele, “você era uma divindade, o que era cômodo, belo, tão inviolável… agora você é mulher”. Apollonie, a  mulher idolatrada, era uma “carne espiritual” e não, como Jeanne, feita para o gozo desta terra.

 

4 – O amor é indissociável do ódio?

O amor pode virar ódio. A substituição do amor pelo ódio é comum , como se o ódio fosse a cara-metade do amor. Isso acontece porque o amado é a condição do ser do amante  que não suporta a separação. Se o outro é a condição do meu ser, se para existir eu dependo dele, é óbvio que, se o outro não me quiser,  eu tendo a passar do amor ao ódio. O amante não suporta a recusa e, por isso,  até o crime se torna possível, como na peça de Shakespeare. Quando Otelo se certifica erradamente de que Desdêmona o trai, ele diz: “– Vou matá-la… Maldita seja ela a partir de agora. Que ela apodreça. Que ela desapareça. Desdêmona não viverá. Meu coração virou pedra. Bato nele e ele machuca minha mão…”

 

5 – Como a senhora teve o insight de distinguir a paixão do amor da paixão do brincar?

A questão é pertinente. Foi de fato um insight que eu tive por ser  interlocutora do carnavalesco Joãozinho Trinta. Ele dizia que a verdadeira cultura do Brasil é a cultura fluindo através do brincar. Cada cultura tem a sua característica. Na França, o que prevalece é a noção de direito, le droit. A criança cresce ouvindo tu as le droit (“você tem o direito”), tu n’as pas le droit (“você não tem o direito”). Na Espanha, o que conta é a honra, el honor. Os ingleses valorizam sobretudo o humor, the humor. Nós temos o brincar, que é um valor civilizatório e nada tem a ver com o sacanear, que é o uso da lei para lesar o próximo.

 

6 – Por que o brasileiro desenvolveu essa relação particular com o amor?

Fui encontrar Gilberto Freyre no Recife para saber qual a origem da cultura do brincar. Me permito citar o que ele me disse e foi publicado no meu livro A força da palavra. «O brincar veio sobretudo do negro que é um extrovertido… O negro é, mais do que o europortuguês, mais do que o ameríndio de origem asiática e não tropical, o verdadeiro filho do trópico…. De modo que, no Brasil, ele não veio para um meio estranho, veio para um meio ao qual estava predisposto… O negro transpira pelo corpo inteiro. Transpirando pelo corpo inteiro, ele é extrovertidamente feliz no seu modo de respirar o trópico». Para saber mais é necessário fazer uma pesquisa. O fato é que o nosso herói, Macunaíma, brincava que mais brincava com a sua amada Ci…

 

7 – Há quem diga que a paixão precede o amor. Eles são de fato, coisas distintas? Como defini-las e entender a relação entre elas?

O amor é uma das três paixões humanas. As outras duas são a paixão do ódio e a da ignorância. As pessoas distinguem a paixão do amor considerando que a paixão é vapt vupt, passageira, enquanto o amor é duradouro. O amor se quer eterno. Os que se amam verdadeiramente são almas gêmeas. Não concebem a separação,  preferem até morrer a se separar. A história de Romeu e Julieta, a grande peça de Shakespeare sobre o amor. Imaginando que Julieta está morta, Romeu toma um veneno e morre. Julieta, que não estava morta, se suicida com o punhal dele. É isso. Há muitos exemplos. Um deles é o de Mariana Alcoforado, personagem de As cartas da religiosa portuguesa, que prefere morrer a ficar sem o amado.

 

8 – A diferença entre o amor e a paixão pode em alguma medida explicar a grande troca de parceiros hoje? Quando a paixão acaba, parto para outra? Ou é a própria dinâmica do casamento, a presença constante do outro, que mina o amor?

A troca de parceiros tem a ver com a liberação sexual e a desvalorização do sentimento amoroso. Os trovadores que nós temos hoje no Brasil são os músicos e o maior deles é Roberto Carlos. Ele não é o rei por acaso. Roberto ama o amor como ninguém e a sua amada para todo o sempre, canta com essa força na alma. Contrariando a atualidade, ele diz em alto e bom som que «o amor é importante», «levanta as águas do oceano», que «nem o céu, nem as estrelas, nem mesmo o mar ou infinito é mais bonito».

 

9 – O casamento ainda faz sentido em um momento em que a sociedade experimenta outras formas de relação, como o poliamor?

Poliamor é um  estranho neologismo. O ser amado é único, embora ele não seja eterno. O amor se quer eterno, mas, como diz Zé Celso, ele tem “um pavio apagador”. Isso porque o objeto do desejo pode mudar. Por isso, a fidelidade, que é um ideal do amor, é raro e o adultério é comum. O sexo com várias pessoas não é novidade, era a prática dos libertinos franceses do século XVIII e ela se perpetuou em certos meios, até que a Aids acabou com a festa. A partir daí, esta prática se tornou perigosa, e a fidelidade foi revalorizada, o casamento, que pode ser bom para uns e não para outros. Trata-se de uma questão de foro íntimo. Pessoalmente, eu não gosto do «até que a morte nos separe», porque o desejo pode mudar de objeto. Mas as pessoas precisam desta ilusão, ainda que depois ela possa custar muito caro.

 

10 – O amor é narcísico. Isso significa que sempre amamos a nós mesmos?

O amor quer que o amante e o amado sejam idênticos. Se o outro não se assemelhasse a mim, se eu nele não reconhecesse a minha imagem, não o amaria. Daí o poema de Carlos Drummond de Andrade: «Os amantes se amam cruelmente/e com se amarem tanto não se veem/Um se beija no outro, refletido/Dois amantes que são? Dois inimigos.» O amor é sempre narcísico, o amado é um outro que não é inteiramente outro. Agora, o amor não é sempre cruel, e os amantes não são necessariamente inimigos.

 

11 – Como a psicanálise entende o amor hoje? É possível explicar como e por que ele surge?

Escrevi O que é o amor há trinta e cinco anos e quem escreveu foi uma escritora de formação psicanalítica, uma escritora que não pensou nas reações possíveis do seu meio social, bem mais machista na época. O livro foi extremamente polêmico e até de nazista eu fui chamada. Por outro lado, que eu saiba, não existe uma teoria psicanalítica nova sobre o amor e, como eu digo no meu livro, o amor é um enigma que nós não temos como decifrar. Daí a pergunta de Fernando Pessoa no Livro do Desassossego: «Anjo, de que matéria é feita a tua matéria alada?». O amor é um ser alado sem o qual nós não viveriamos, ele suspende a realidade e nós precisamos disso. Me refiro ao comum dos mortais, e não ao dos mestres budistas, que têm condições de suportar o inferno que é o mundo.

 

12 – Alguns psicanalistas questionam hoje o Complexo de Édipo, por ter sido espelhado em uma sociedade diferente da atual. Ele ainda serve para explicar por que escolhemos determinado tipo de parceiro?

O Complexo de Edipo é um dos mitos extraordinários da Psicanálise. Antes de Freud, os doentes mentais eram isolados nos sanatórios. Freud recorreu à tragédia grega para explicar a doença mental e, com isso, ele humanizou os doentes. Agora, não há como explicar por que a gente escolhe um determinado parceiro e não outro. Podemos fazer hipóteses. São  muitos fatores  e nenhum deles por si só explica a escolha.

 

13 – O que determina a duração do amor?

Outra pergunta que eu não tenho como responder. Cada caso é diferente do outro e precisa ser considerado na sua singularidade. Respondi a um sem-número de e-mails no consultório sentimental que fiz na Folha de S. Paulo e na Veja.com durante sete anos. As colunas foram publicadas pela Record em dois livros, Fale com ela e Quem ama escuta. Aí, eu analiso diferentes casos, partindo da história concreta, do texto da pergunta.

 

14 – A monogamia é uma ameaça ao amor?

Não é. Agora, como eu já disse, o amor não é para todo mundo.

 

15 – Ainda pensa que é impossível dizer o amor no português?

Na época em que eu escrevi isso, eu me referia ao português do Brasil. Os portugueses cantam o amor desde sempre. A lírica camoniana é um verdadeiro assombro. Agora, tanto não é impossível dizer o amor no português do Brasil que eu disse e agora adaptei o livro para uma versão audiovisual. Os textos estão sendo filmados e ditos lindamente pelo ator Ricardo Bittencourt para figurarem no youtube.

 

16 – O amor é uma invenção cultural?

O amor surge, no século XII,  com o trovador e o amor cortês.  Segundo o código do amor cortês, o trovador devia expressar seus elogios e súplicas a uma mulher da nobreza, casada, que tivesse uma posição social reconhecida. O amor cortês é um marco na história da civilização, porque ele enaltece a mulher. Quem melhor falou sobre isso, na minha opinião, foi Octavio Paz, no último livro que escreveu, A dupla chama.

 

17 – Seu livro centra fogo no machismo. Em que medida a ética machista é contrária ao sentimento amoroso?

Não pode haver amor sem o reconhecimento do desejo do outro. Macho que é macho não reconhece nenhum desejo que não seja o seu. O machismo é uma ética infeliz e assassina como na “Tragédia brasileira”, o poema de Manuel Bandeira. Misael, funcionário, conhece Maria Elvira, tira da vida, instala e trata. Ela arranja namorado. Ele, para evitar escândalo, muda de bairro, muda dezessete vezes — até um dia matá-la a tiros. Misael, indubitavelmente, fez de tudo para escapar ao imperativo machista, mas não teve como, e o fato é que Maria Elvira acabou assassinada, pagou o preço máximo. Necessário que o machismo seja desqualificado sistematicamente. Chegou a hora do «diga não».

 

 

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Revista Veja, Rio de Janeiro (RJ).