O que é o amor V
1 – Você escreveu a primeira edição de O que é o amor 35 anos atrás. À época, dizia que o amor era “depreciado e ridicularizado” e que, “valorizado, só o sexo”. Acha que neste aspecto algo mudou de lá para cá? Se sim, o quê?
O livro foi escrito nos anos oitenta, antes da descoberta do virus da Aids. Ainda est ávamos na onda da Revolução Sexual e o sexo era supervalorizado. A ponto de as mulheres serem obrigadas a transar para mostrar que eram livres. Havia uma tirania do sexo. O sexo era obrigatório, o que, obviamente, é contrário à liberdade. O sexo só é livre quando não é obrigatório e nem compulsório. Disse isso repetidamente no meu consultório sentimental – transformado nos livros Fale com Ela e Quem ama escuta. A pessoa é livre quando tem liberdade subjetiva, ou seja, liberdade de dizer “não”. Acho que esta liberdade, hoje, é maior, e isso também se deve ao movimento das mulheres contra o assédio. Agora, quanto ao amor, acho que a situação substancialmente não mudou, porque quem ama não pode ser imediatista e nós nos tornamos mais imediatistas do que nunca. Quem ama aceita esperar, ficar descontente, porque sabe do contentamento que o encontro propicia. O amor é um sentimento contraditório. Como diz Camões, «o amor é um contentamento descontente». A paixão amorosa é contrária ao utilitarismo contemporâneo, ela implica uma relação com o tempo que nada tem a ver com o time is money.
2 – Em tempos de redes sociais, com Narcisos espalhados à nossa vista, você acha que estamos cada vez mais insensíveis ao outro?
Escrevi no meu livro que o amor tem sempre algo de narcísico. O amante se vê no amado. Agora, o que varia é o grau de narcisismo. Pode, inclusive, ser cruel, como diz Drummond: «Os amantes se amam cruelmente/ e com se amarem tanto não se veem…». No amor verdadeiro, não é o narcisismo que prevalece, porque ele implica o respeito pela liberdade do outro. O amante quer o que o amado deseja, quer que este se realize. O amor verdadeiro não está ao alcance de todos. Sobretudo dos Narcisos aos quais você se refere, porque eles não vivem no culto do amor e sim no da vaidade. O que eles mais valorizam é a luta de prestígio, que obviamente torna insensível ao outro. Somos vaidosos e desconfiados. Isso é contrário ao amor que não aceita a desconfiança.
3 – Há alguma solução para reverter esse processo?
Solução global, não há. A solução pode ser encontrada pelo indivíduo quando ele se debruça sobre o seu insucesso amoroso, que frequentemente tem a ver com a impossibilidade de aceitar limites ou de se conter. O insucesso amoroso é um dos grandes temas da literatura, com a qual, no passado, as pessoas faziam a sua educação sentimental. Há duas peças de Shakespeare que focalizam só aquele tema, Romeu e Julieta e Otelo. Na primeira peça, são as famílias que separam os amantes. Na segunda, é o ciúme, «um monstro que se autoengendra», como diz o dramaturgo. No caso de Otelo, o ciúme o leva a assassinar Desdêmona. Trata-se de um exemplo da conversão do amor em ódio, de que eu também falo no meu livro.
4 – Nos últimos 35 anos, você acredita que aprendemos a lidar com a rejeição ou, pelo contrário, estamos cada vez mais sensíveis a ela?
A sua questão só poderia ser respondida por um psicosociólogo que tivesse pesquisado um grupo determinado de pessoas nos últimos 35 anos. Agora, cada indivíduo lida com a rejeição de maneira diferente – em função da sua personalidade, da sua educação e da sua cultura. Há culturas em que o indivíduo é levado a reagir violentamente e outras que preconizam a indiferença. Preciso lembrar que o amante nem sempre rompe com o amado por ter sido rejeitado. Isso acontece pelo fato de que o amante não se concebe sem o amor. Trato disso no meu livro através da história de Mariana Alcoforado, das Cartas da Religiosa Portuguesa.
5 – Você explica a origem da polaridade do amor-ódio, mencionando a absoluta simbiose entre parceiros. Existe algum modo de encerrar um amor sem que se termine odiando o(a) ex, na sua opinião?
Claro que sim. A paixão do ódio tem que ser evitada, porque faz muito mal aos que se entregam a ela. Quando não é possível, é bom procurar um analista.
6 – Outro ponto interessante que você defende é o de que o amor não vive sem a falta, sem o mal causado pela ausência. Novamente, menciono os tempos atuais em que, via internet, nunca estivemos tão presentes uns nas vidas dos outros, ainda que de maneira ilusória e superficial. Você acha que isso prejudica ou beneficia o amor? Por quê?
Verdade que o amor se nutre da falta. O discurso amoroso precisa dela. As pessoas que mandam mensagens o dia inteiro podem estar desperdiçando as palavras, fazendo mau uso delas. O amor não suporta a banalização.
7 – Você menciona que a segurança adormece o amor, e que, caso nenhuma ameaça exista, o amor a fabrica. Como devemos lidar com questões como ciúme e insegurança para não prejudicar um relacionamento?
Ovídio diz que a a espera aguça o amor e recomenda resistir ao pretendente sem o afastar. A espera aguça a tal ponto o amor que Psiquê corre mundo à procura de Eros quando ele vai embora; ela se submete às mais duras provas, atravessa o Rio da Morte e vai até o reino de Perséfone —a rainha dos infernos. Como o verbo “lidar” aparece repetidamente nas suas perguntas, sou levada a responder que uma análise é um recurso poderoso para lidar com o ciúme. Mas também posso recomendar a leitura do Otelo, que está bem traduzido na nossa língua. Seja como for, é preciso difundir, através da imprensa, que o ciúme não justifica a violência… em hipótese nenhuma. Na França, o ciúme é malvisto.
8 – Àquela época, há 35 anos, você já chamava a atenção para a transformação do amor em performance. Como você avalia este aspecto atualmente, com a exibição constante da “felicidade” em redes sociais, programas de televisão etc.?
Como se diz, a publicidade é a alma do negócio. A exibição constante da felicidade está à serviço da nossa sociedade de consumo. Por diferentes razões, inclusive para preservar o planeta, nós precisamos dizer “não” a ela. Vale terminar lembrando Sêneca. Segundo ele, homem feliz é aquele que nada deseja. Nada é exagero, mas, quanto mais nós evitarmos o consumismo, mais felizes nós seremos.
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Folha de S. Paulo – Ilustrada, 09 de julho de 2018.