O que é o amor III
1 – Bauman falou sobre o amor liquido, uma relação cada vez mais comum na nossa sociedade: rasa, fluida, sem limites, sem condição de durar. Você concorda?
Bauman é um sociólogo e ele fala das tendências existentes na sociedade. Não é disso que eu trato no meu livro e sim do amor entre as pessoas, um amor que pode ser duradouro ou não. O amor verdadeiro é duradouro, mas ele é raro. Trata-se de uma experiência humana que não é dada a todos. Neste caso, o amor importa mais do que a própria vida. Há grandes amores na história, como o de Abelardo e Heloísa, que se passa na França, no século XII, ou D. Pedro I de Portugal eInês de Castro, no século XIV. Ninguém ignora os grandes amores que a literatura produziu, como o de amor de Romeu e Julieta, uma peça de Shakespeare que se passa na Itália. Eu diria que o verdadeiro amor flui continuamente, aconteça o que acontecer.
2 – Acha que nos latinos, famosos por sermos apaixonados, também seguimos o comportamento descrito por Bauman?
Não sei a que latinos você se refere exatamente. O mais apaixonado dos latinos foi Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, do conhecidissimo verso « o amor move o sol e as estrelas ». Nada a ver com o amor líquido de Bauman que tem mais a ver com o chamado latin lover, o garoto de programa das americanas ricas. Há muita confusão entre amor e sexo. O amor e o sexo podem andar juntos ou separados e o amor pode ser um mero pretexto para fazer uma conquista sexual, como no caso de Don Juan, por exemplo, um caso analisado no meu livro O que é amor.
3 – Há como fugir do comportamento descrito por Bauman ou ele não é necessariamente negativo?
Nessa área não existe positivo ou negativo. Só sei que o amor profundo é uma conquista. Mas ele não tem a ver com a idade. Há jovens que se amam profunda e duradouramente. Há encontros sublimes entre pessoas idosas. Um dos romances de Gabriel Garcia Marques trata disso.
4 – A iniciação ao amor hoje é diferente ? Mais cedo e mais ingênua?
Há desenhos animados e historinhas em que as crianças vêem os casais namorarem e se beijarem. Não se pode, no entanto, considerar que seja uma iniciação ao amor. A iniciação só acontece através da experiência amorosa ou da literatura, que é a verdadeira fonte da educação sentimental, rara no contexto da família.
5 – Você abre o livro falando de Narciso. Estamos em uma sociedade muito vaidosa com demonstrações públicas de auto amor. Isso também é prejudicial ao amor a dois?
O mito de Narciso é fundamental para falar do amor. Narciso se vê no espelho d’agua, se apaixona pela própria imagem e acaba morrendo por isso. Não consegue deixar de se olhar. Posso dizer, para usar a sua terminologia, que ele é vítima do auto amor. Agora, eu me valho do mito grego no livro porque o amor é narcísico na sua essência. Os amantes se espelham um no outro e, por causa deste espelhamento o amor pode ser cruel. O amante não aceita que o amado seja diferente, quer a coincidência absoluta. Ninguém expressou isso melhor do que Carlos Drummond de Andrade: « Os amantes se amam cruelmente/e com se amarem tanto não se vêem/Um se beija no outro, refletido/Dois amantes que são? Dois inimigos. »
6 – Alguns autores filósofos descrevem o amor como a razão da existencia, motivo para continuar, razão a perseguir. Isso parece tão antiquado no mundo de hoje…
Depende de que amor você está falando. Hoje mesmo eu ouvi uma mãe dizer que só ia se tratar de um câncer para poder educar as suas crianças que são pequenas. O amor para ela é um motivo para continuar. O amor materno é um e o amor paixão é outro. Também neste caso o amor pode ser uma razão a perseguir. A literatura ilustra bem isso, particularmente As Cartas da Religiosa Portuguesa. Nada faz a religiosa, Soror Mariana, desistir do amado. Acusa o amado de má-fé e traição, mas reafirma que o ama perdidamente. Diz para si mesma que não deve procurar um homem que já não voltará a ver e não pensa um só minuto nas mágoas dela. Mas logo se desdiz, negando realidade e “preferindo a paixão às razões de se queixar”. Nada desqualifica o amado, porque se ele for desqualificado, o amante fica sem o amor.
7 – Há homens e mulheres que ainda consideram o casamento uma necessidade. Como explicar isso?
O meu primeiro romance, O Sexophuro, tratava da impossibilidade para as mulheres de se conceber sem o casamento. Isso felizmente mudou. Mas a maioria das pessoas quer constituir família afim de se perpetuar através dos descendentes e para ter maior segurança. Nem sempre dá certo como nós sabemos.
8 – A discussão sobre gênero ganhou a esfera pública. O amor passa a ser enxergado diferentemente por conta de relações entre pessoas do mesmo sexo ou de pessoas que definem gêneros diferentes do sexo?
O amor é indiferente ao gênero. O filme Me chama pelo meu nome demonstra isso claramente. Sei de mais de uma história de homens e mulheres que sempre foram heterossexuais e, de repente, são surpreendidos por um amor homosexual devorador ao qual eles se entregam apesar da estranheza. O amor não tem nada a ver com a procriação embora tenha sido associado a ela, ele tem a ver com o encontro das almas gêmeas e a gemelaridade não depende do sexo.
9 – A tecnologia muda as relações. Desde a maneira como nós nos conhecemos até o dia a dia após o compromisso ser firmado. O fato de nós nos conhecermos através de aplicativos tira a naturalidade do processo ou ela nunca existiu?
A tecnologia muda as relações mas o amor continua a depender das palavrinhas de amor. Sem elas o amor não existe e é por isso que escrevi um capítulo chamado Os dizeres do amor que são vários: eu te amo, sem você eu não existo, prova que me ama…
10 – Ter acesso a informações prévias pode garantir maior taxa de sucesso no amor?
Claro que a aliança com um bandido está fadada ao insucesso. Agora, o sucesso no amor depende e muito da delicadeza e da sensibilidade das pessoas, da capacidade de respeitar a liberdade do outro. Octavio Paz que escreveu um livro maravilhoso sobre o amor, A Dupla Chama, diz que o amor é uma aposta na liberdade. Costumo citar muito este autor.
11 – O contacto mais próximo, durante todo o dia, através de aplicativos, provoca mais intimidade?
Intimidade não é sinônimo de grude. A intimidade entre as pessoas depende da capacidade de se escutar. As pessoas não deixam de ser íntimas por não se comunicarem durante muito tempo.
12 – O que é o ciúme?
O ciúme é um monstro que se auto-engendra, ele é o produto de uma imaginação doentia e pode levar ao crime. Infelizmente há muitos exemplos na realidade. Na literatura, o melhor exemplo está na peça de Shakespeare, Otelo.
13 – O sexo ganhou a esfera pública e isso foi benéfico para as mulheres, que puderam se expressar mais claramente. O desejo feminino não é mais ilegítimo.
A liberação sexual dos anos setenta foi positiva nesse sentido. Até então este desejo era desautorizado e só as mulheres mais avançadas tinham uma vida sexual livre. Quem leu Nelson Rodrigues sabe a que ponto o desejo condenava as mulheres, que eram umas desavergonhadas quando expressavam o seu desejo.
14 – No seu livro você diz que o sexo pode comprometer o amor.
Sim, eu conto a história de Baudelaire, o autor das Flores do Mal. O dever do gozo é uma violência contra o amor. Isto é flagrante na história de Baudelaire. A sua concubina é Jeanne, mulata viciada no álcool e nas drogas, “um inferno”. A mulher que ele cultua é Apollonie, uma loura amiga das letras e das artes.
Sem revelar a sua identidade, temendo o ridículo, Baudelaire envia poemas e bilhetes para Apollonie. Trata de mui bela, mui boa e mui cara, Anjo da guarda, musa e madona, celebra o amor ideal, desinteressado e respeitoso.
De 1852 a 1857 tudo se passa anonimamente. Até a publicação de As flores do mal, um livro de sucesso e provocador de escândalo. No livro, estão os poemas que Baudelaire enviou para a sua musa, Apollonie, que então se entrega a ele. O fracasso do poeta é completo, assim como a sua decepção — “… há alguns dias”, escreve ele, “você era uma divindade, o que era cômodo, belo, tão inviolável… agora você é mulher”.
Apollonie, a mulher idolatrada era uma “carne espiritual” e não, como Jeanne, feita para o gozo desta terra.
15 – As mulheres assumiram outra posição nos últimos cinco anos. São anos de construção de independência social. Hoje é bastante significativa a independência financeira, posições de liderança nas empresas. Como isso muda a relação amorosa na prática? Quem tem a última palavra?
Depende de cada casal. O fato de uma pessoa ter mais poder social ou financeiro do que a outra não implica que ela terá mais poder na relação. O amor não tem nada a ver com a luta de prestígio, entre pessoas que se amam verdadeiramente ela não existe. Mas eu repito, cada história é diferente da outra e não existe regra geral.
16 – Como fica a questão da fidelidade?
Sou obrigada a repetir o que já disse na resposta anterior. Depende de cada casal. Seja como for, a fidelidade é um ideal difícil de alcançar porque o desejo tende a mudar de objeto. A infidelidade é sempre possível. O psicanalista Jacques Lacan dizia que a civilidade dos franceses estava na tolerância em relação a isso. O Museu Picasso de Paris era a residência de um conselheiro do rei que nela também acolheu o amante da sua esposa e a família dele.
17 – A minha impressão é que são tantos amores diferentes que precisam ser respeitados e compreendidos. Ou é um único amor com diferentes códigos.
Os amores são diferentes. Agora, o discurso amoroso é um só e é dele que eu trato no meu livro.
18 – Tem um movimento contrário muito forte à liberdade amorosa e sexual. Por que a escolha do outro, quando é diferente da nossa, incomoda tanto?
Porque, como eu já disse, o amor tende a ser narcísico. Nós tendemos a gostar do que se assemelha a nós. Para aceitar a diferença é preciso se colocar à escuta do outro. Neste caso, nós podemos nos identificar com ele.
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Revista Claudia – Entrevista para Isabelle Dercole, maio de 2018.