O que é isso, FHC? (2002)
Betty Milan
Este texto integra a nova versão
do livro Isso é o país .
A morte trágica do prefeito de Santo André, Celso Daniel, o segundo homem público brasileiro assassinado em menos de seis meses, precipitou as reações da classe política, revelando-nos o seu imaginário — que também explica por que o país está entregue à violência.
“Isso [o assassinato do prefeito] nos emociona e nos escandaliza. A arrogância do crime passou de todos os limites”, declarou Fernando Henrique, colocando a ênfase na arrogância, e não no crime. O pronunciamento evidencia que não é a criminalidade, mas sua forma, que interessa.
Como pode o chefe supremo declarar isso? Dar a entender que o importante é a forma significa simplesmente deixar o crime estar. Desde que não passe dos limites, este é suportável. Ou seja, o crime é tratado como a contravenção — prática que, sendo ilegal, é considerada legítima e vigora impunemente.
Quando a tolerância ao crime se manifesta no discurso do chefe da nação, esta não é viável. Porque, na falta de um governo que faça a autoridade da lei vigorar, ela fica inevitavelmente entregue à violência e exposta ao autoritarismo da polícia. Por isso, aliás, nós ouvimos falar de guerra civil e de polícia militar.
“Arrogância do crime” é uma estranha redundância. Segundo o dicionário, arrogância é sinônimo de insolência, que, por sua vez, é sinônimo de inconveniência. Tratar o criminoso de arrogante é tratá-lo de inconveniente, ou seja, é falar dele como de um aluno mal-comportado. Quando estamos ameaçados de seqüestro e morte.
O que explica a fala do presidente? Ser ele um professor fora do lugar? Não. O que explica é o inconsciente, revelando, apesar de FHC, o que FHC de fato pensa, e nos faz entender por que o plano de segurança nacional por ele anunciado dois dias antes do crime hediondo de Santo André não foi efetivado. O governo nem repassou o dinheiro aos estados e nem aplicou a verba inscrita no orçamento para gastos em segurança pública.
Fernando Henrique não acreditava nas suas próprias promessas. Como o embaixador de Israel na necessidade do esforço para acabar com a guerra no Oriente Médio — esforço que ele preconizava numa mesa-redonda dos Encontros de Versalhes de 2001. Por isso, em vez da expressão “cessar fogo”, o embaixador usou a expressão “cessar a paz”, um lapso que antecipou o recrudescimento da guerra no Oriente Médio.
O inconsciente denuncia o homem público, fazendo dele uma vítima do próprio discurso. Tiro no pé. Noutras palavras: o inconsciente condena, revelando a duplicidade.
O discurso de FHC, que não pode ser dissociado do imaginário nacional, mostra o quanto nós autorizamos a impunidade. Por isso, a nossa questão não é só de polícia, mas de política, como escreveu Frei Betto na Folha de S. Paulo no dia seguinte ao crime.
A questão é de política educacional. Porque só podemos transformar o imaginário ensinando os valores básicos da cidadania. Num país em que a lei é tradicionalmente desrespeitada e o crime máximo pode ser tratado como contravenção, nada importa mais do que o ensinamento do respeito à lei e à autoridade dela. Porque só a lei torna a punição legítima. Só ela desautoriza o autoritarismo, fazendo quem tem poder não abusar dele.
Já está na hora de diferenciarmos entre poder — que é caprichoso, não tem e não aceita o limite — e autoridade — que não se concebe sem o limite. Qualquer crime é um ato em que o sujeito fez pouco das regras da cidadania e deve ser punido pela Justiça. Até para evitar a “justiça” que o homem faz com as próprias mãos. Ou seja, a barbárie.