O protocolo de Paraisópolis

O protocolo de Paraisópolis

bettymilan
Publicado na Folha de S. Paulo, 18 de dezembro 2019

 

– Funk ? Mas o que é isso ?
– Baile funk, ora. Você não sabe ?
– Coisa de negro, só pode ser
–Vamos lá…

Foi  possivelmente depois de um diálogo como este que a polícia entrou  no baile de Paraisópolis, jogando bombas. Nove jovens que estavam para dançar o funk, foram mortos. A maioria (seis), evidentemente, era afro descendente. No dia seguinte, apareceu o governador, na televisão, dizendo que a polícia militar de São Paulo é a melhor do Brasil, a única que segue um verdadeiro protocolo e este não ia ser alterado. Depois, pressionado pela mídia, ele mudou de idéia.

A palavra protocolo diz respeito a um conjunto de regras ou critérios cumpridos numa dada atividade. Ou seja, é uma palavra vazia porque as regras não podem ser as mesmas em situações diferentes. O governador se valeu dela precipitadamente para mostrar serviço. Porque mostrar é a única coisa que de fato conta para quase todos os nossos políticos se não para todos.

Até quando um governador  pode fazer uma declaração como esta ? Com que direito ? Quem pode votar num político que reage desta forma diante do assassinato inexplicával de nove jovens da cidade ? Polícia nenhuma, em lugar nenhum do mundo, tem o direito de entrar num baile, onde há cinco mil pessoas, atirando bombas. A tentativa de prender um criminoso que estava no baile não convence ninguém. Melhor deixar o criminoso escapar do que matar vários jovens.

Agora os policiais estão sendo investigados. Porém isso não basta, é preciso que o governador seja responsabilizado pelas suas palavras, que foram tão irresponsáveis quanto as ações da polícia. As palavras de qualquer pessoa que ocupa um cargo  político tem que ser responsáveis. Seja ela de direita ou de esquerda.

Os pais perderam os filhos por  eles gostarem do funk e se identificarem com os afro americanos que, nos anos sessenta, criaram uma nova forma de música através da mistura de soul, jazz, rhythm e blues ? Uma música rítmica e dançante, que os brasileiros de todas as classes  adotaram  por serem amefricanos e terem a cultura africana no sangue como os afro-americanos.

O funk é um descendente do jazz que, por sua vez, ele influenciou. Não foi só nos Estados Unidos, mas também no Reino Unido que  o funk atingiu seu auge de popularidade – sem sofrer o mesmo tipo de discriminacial racial que limitava sua aceitação na América do Norte. Grupos como os Rolling Stones levaram o funk a grandes platéias e não serão esquecidos.

Mas a polícia não quer saber disso. Com a idéia de que bandido bom é bandido morto o que ela quer é matar.  Só que, desta vez, o « protocolo » foi desqualificado a ponto de desqualificar quem o sustentou. Quem não suporta os que gostam do funck, música cuja grande referência era Miles Davis.

Paraisópolis, que tem cem mil habitantes e nove famílias  de luto pelos filhos, não pode aceitar  o ocorrido e paulista nenhum pode. A horrenda carnificina não será esquecida  e as palavras do governador também não.

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Betty Milan é escritora e psicanalista, autora dos romances O Papagaio e o Doutor e Baal, entre outros.