O Papagaio e o Doutor: Parodiando Rabelais
P: Do que trata O Papagaio e o Doutor?
BM: Seriema, a heroína, é neta de imigrantes libaneses radicados no Brasil. Ela rememora no romance a história dos ancestrais e a sua análise com um célebre doutor parisiense, um doutor que Lacan poderia ter inspirado. Por isso, aliás, o romance foi muito bem recebido na França.
P: Houve inclusive uma publicidade com uma foto sua rindo desbragadamente.
BM: Sim, porque a Seriema é uma espécie de Regina Casé. Além da publicidade, o editor fez um cartaz que foi colado em todos os bairros de Paris por causa da foto e da frase que eu escrevi, parodiando o Rabelais.
P: Que frase?
BM: O Rabelais escreveu que o riso é a característica do homem, e eu fiz outra frase perguntando se ele acaso não é a característica da mulher.
P: Você se analisou com o Lacan, não é?
BM: Foi.
P: O que é que o divã faz o leitor do romance descobrir?
BM: O drama da imigração e os efeitos dela. A heroína se pergunta – rememorando – se é necessário renegar as origens para se integrar quando se descende de imigrantes.
P: As questões da sua heroína foram as suas?
BM: Sim, eu sou neta de imigrantes libaneses e também escrevi o romance para encontrar resposta para questões minhas. Me dei conta de que o imigrante – por causa do sofrimento – quer esquecer o passado. A imigração é um drama tanto por causa da separação real, que ela supõe, quanto da mutilação que resulta do fato de o imigrante ser arrancado da sua cultura natal. A imigração tem consequências dramáticas.
P: Quais?
BM: A primeira é que o imigrante quer se esquecer da travessia, deseja que o passado seja apenas o prólogo do futuro e, portanto, não conta a história aos descendentes. Para que estes possam escapar à recusa do ancestral e ter um passado, é preciso reconstruir o passado, inventá-lo. Sem esta invenção, o filho do imigrante é um ser incompleto, porque ele fica sem passado. Isso é o que a minha heroína compreende à medida que ela conta a história. Outra consequência da imigração é a relação dúbia que o imigrante tende a estabelecer com o seu novo país. Ele tem uma relação nostálgica com a pátria perdida, mesmo quando a abandonou por causa da guerra, e, por isso, só lega o novo país aos filhos dando a ideia de que o “verdadeiro país” é o que ele teve que abandonar. A Seriema, a heroína do livro, sofre porque os ancestrais “fizeram a América” exaltando o Líbano e se referindo aos nativos com um certo desprezo.
P: O imigrante então despreza o país onde se radica?
BM: Tende a desprezar os nativos, porque são diferentes e porque estes o desprezam por causa da sua diferença. Inclina-se à xenofobia – ódio do estrangeiro –, apesar de ser vítima da xenofobia dos nativos. O descendente de uma imigração vive dividido entre o desprezo transmitido pelo ancestral e o desejo de amar e ser amado pelos compatriotas. Ele é levado a dissimular as origens e o ódio de si mesmo. O recurso à psicanálise permite descobrir que o ódio de si não é o preço da integração, que ninguém precisa esquecer o passado para se integrar.
P: A Seriema lamenta até a pele morena…
BM: Sim, até descobrir que a cultura da mestiçagem pode nos preservar das intolerâncias e abrir espaços novos. A gente vê através do romance que o Brasil, à sua maneira, é um país muito moderno, porque todas as crenças são aceitas e ninguém é marginalizado por causa da sua religião.
P: Por que o recurso à psicanálise para contar a história?
BM: Não utilizei a análise como recurso narrativo por acaso, mas porque ela me permitiu mostrar de que forma uma heroína que se envergonha das suas origens e do fato de ser mulher pode superar a vergonha e se amar.
P: Do ponto de vista literário, qual a particularidade deste romance?
BM: A heroína se constitui através do discurso dos ancestrais, e não através da sua psicologia, o que é contrário à convenção literária. A Seriema é o produto de uma história que ela procura compreender para encontrar o seu lugar. Trata-se de uma personagem feminina de uma grande irreverência e que, apesar de tudo, acaba bem, ao contrário da maioria das personagens femininas irreverentes da literatura mundial, como a Bovary ou a Madame de Merteuil, de Ligações perigosas.
P: Trata-se ou não de uma autobiografia?
BM: Não, o que eu escrevi é a biografia da Seriema, reinventada por ela através da história dos ancestrais. Trata-se de uma heterobiografia.
P: O Papagaio e o Doutor foi lançado no Brasil em 1991 pela Siciliano. Depois, na França, em 1997, pela Editions de l’Aube. A Record lança agora a “versão definitiva” do livro. Gostaria que você explicasse qual a diferença entre esta versão e a primeira.
BM: A versão definitiva é o resultado de dez anos de trabalho. Fui levada a isso por ter feito a adaptação do texto para o francês e ter acompanhado a tradução. Ao adaptar o texto para outra língua, encontrei soluções melhores e fui modificando o original. A versão brasileira supunha conhecimentos que o francês não tem, e eu reescrevi várias passagens em função disso. Queria que o texto passasse mesmo para a outra língua e tive que adaptar. Foi um trabalho considerável. Compensou, não só pelo resultado em francês, mas ainda porque eu reescrevi o livro e a nova versão brasileira é melhor.
P: Você então reescreveu o livro?
BM: Aproximadamente quinze por cento, mas num romance isso é muito e por isso pode-se considerar que se trata de outro livro.
P: Além da francesa, há outras traduções?
BM: O romance já está traduzido para o espanhol por Alicia Dujovne Ortiz e será lançado pela Homosapiens na Argentina. Na Alemanha, vai ser traduzido pelo Meyer-Clason.
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1. Entrevista preparatória para o lançamento da obra, concedida à equipe de imprensa da Editora Record.
II
P: O brasileiro imita o estrangeiro?
BM: O brasileiro das elites, sim. Ele, em geral, duvida da sua identidade, porque não reconhece na cultura brasileira, a cultura mestiça do povo. A elite tende a só valorizar o que o estrangeiro valoriza, desde que isso não implique perder os seus privilégios. O brasileiro das elites não para de se perguntar “quem sou eu”, porque ele não quer se espelhar na nossa realidade mestiça, ele a menospreza. Já o brasileiro do povo, o da Mangueira, por exemplo, ou o da Vai-Vai, não é de imitar, porque ele se reconhece na cultura brasileira, a cultura que ele produz através do samba, do Carnaval, do futebol, da literatura de cordel etc. Para este brasileiro do povo, o brasileiro das elites é um papagaio loiro, que precisa se curar do sintoma da imitação. Enquanto isso não acontecer, o Brasil vai viver dividido em dois países, o país das elites, macabro, e o país do povo, alegre, porém miserável.
P: O que é preciso para que os dois Brasis se encontrem?
BM: Por um lado, é necessário que as nossas elites levem a sério a cultura do povo, a cultura mestiça do brincar – a única, aliás, que se exporta para o mundo inteiro, seja através da música, seja através do futebol ou do Carnaval. Por outro lado, é necessário que as elites abram mão do privilégio de estar fora da lei, ou seja, passem a tomar como exemplo a conduta dos americanos, ingleses, franceses, em suma, dos povos para os quais a lei vigora efetivamente. Sem isso, não há como enquadrar os bandidos, e o país continuará entregue ao crime. O encontro dos dois Brasis depende de uma nova consciência das elites, implica sua modernização.
P: As nossas elites são arcaicas?
BM: São, embora pensem que não, por disporem de aparelhos eletrônicos e conhecerem tecnologia avançada. As elites são arcaicas por serem nacionalistas, ainda que sejam indiferentes ao que é autenticamente nacional; são nacionalistas sem serem patriotas. Já o povo brasileiro, embora miserável, é moderno, porque é aberto ao outro, a quem ele se exporta e que ele importa sem nunca imitar, reinventando sempre. O melhor exemplo disso talvez seja o Carnaval que traz do Japão o kabuki, da China o Buda e da Índia as dançarinas para fazer o que há de mais brasileiro, o Carnaval, a nossa ópera de rua. A cultura oficial tende a evitar e a imitar o estrangeiro, a cultura mestiça do brincar reverencia irreverentemente as outras culturas, exibe gueixas loiras, cinderelas negras, vestais que sabem gingar. A cultura do povo brasileiro é que é moderna, e nós podemos nos exportar cada vez mais. A modernidade tem muito a aprender com a nossa experiência da mestiçagem, com o Brasil maneiro, o Brasil ladino, este país que é América, mas também é África, que pode ser chamado de Améfrica ladina.
P: O que a modernidade pode aprender conosco?
BM: Nós somos mestiços raciais e culturais e tivemos que aprender a driblar a intolerância para nos perpetuar. O negro brasileiro só pôde ser devoto das divindades africanas dissimulando a sua crença, fazendo de conta, por exemplo, que cultuava Santa Bárbara ao cultuar Iansã, que cultuava o Senhor do Bonfim ao cultuar Oxalá. O negro teve que ser manhoso e disso resultou o humor brasileiro, o nosso brincar, o jogo de cintura que tanto fascina os estrangeiros. O nosso estilo é incompatível com a intolerância religiosa, que é hoje um dos maiores problemas do mundo. Os aiatolás de qualquer doutrina aqui não teriam vez, e uma guerra como a da Iugoslávia não é concebível no Brasil. Aqui, as raças e as culturas, malgrado as questões dos índios, realmente se misturam. Foi no Brasil que o melting pot aconteceu, e não nos Estados Unidos, onde os chineses, os italianos, os negros vivem separados em quarteirões que são verdadeiros guetos. O imigrante aqui foi rapidamente assimilado. Nós resolvemos há um bom tempo o problema com o qual a Europa está se confrontando atualmente e, portanto, temos o que ensinar. Nós podemos enriquecer o imaginário dos outros povos com os temas da mestiçagem. Nós somos absolutamente modernos, apesar do arcaísmo das nossas elites papagaias.
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(não tem referência)