O Papagaio e o Doutor (França, 1997)
P: O Papagaio e o Doutor, publicado no Brasil pela Siciliano, em 1991, sai agora na França pela Editions de l’Aube. Por que você fez a adaptação do texto para o francês?
BM: A versão brasileira supunha conhecimentos que o francês não tem, e eu reescrevi várias passagens em função disso. Queria que o texto passasse mesmo para a outra língua e tive que adaptar. Foi um trabalho considerável, mais de três anos. Compensou, não só pelo resultado em francês, mas ainda porque eu reescrevi o livro e a nova versão brasileira é melhor. Descobri, fazendo esse trabalho, que a nossa cultura é hoje mais rabelaisiana do que a francesa. Por outro lado, dei graças aos céus por escrever em português.
P: Por quê?
BM: Porque a nossa língua dá margem para muita invenção. Além do que, nós tendemos a estilizar a oralidade, e eu gosto disso. Na França, a escrita está dissociada da oralidade. Mario de Andrade fez escola. Céline não teve sucessores.
P: Você então reescreveu o livro.
BM: É, reescrevi. Vários escritores fazem isso. Marguerite Duras, por exemplo, reescreveu O amante da China do Norte, que foi relançado na França.
P: Gostaria que você fizesse algumas considerações sobre o fato de a mulher deixar de ser dita por homens na literatura e passar agora a se dizer.
BM: As mulheres se disseram sempre. Basta pensar em Heloísa e Abelardo. As cartas mais pungentes de amor foram escritas por Heloísa na Idade Média. A novidade talvez seja termos introduzido a nossa fantasia sexual na literatura. Para isso, tivemos que escrever de um modo diferente.
P: Como?
BM: Antes do nouveau roman, a escrita era governada pelo saber. Depois, o não-saber passou a ter um papel determinante no trabalho do escritor. Um bom exemplo é Marguerite Duras. No Brasil, antes dela, houve Clarice Lispector. Penso em Duras por causa de dois livros: Yan Andrea Steiner e Escrever. Duras escreve sobre a inconveniência fundamental da palavra escrita. “Posso dizer o que quiser, nunca saberei por que a gente escreve.” A própria condição da escrita é o não-saber. No mesmo romance, ela afirma que o escritor não tem ideia do livro, tem as mãos vazias, a cabeça vazia “só conhece a aventura do livro, a escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, longínqua”. Ou então: “Se a gente soubesse alguma coisa sobre o que vai escrever antes de fazê-lo, nunca escreveria”. Fica claro, através dessas citações, que o escritor para Duras é aquele que pode não saber ou pode saber só depois, pode errar, e, num certo sentido, por causa disso, a posição dela é antagônica à do mestre, que só entra em cena sabendo. Duras diz ainda: “Escrever eu não posso, ninguém pode, é preciso dizer ninguém pode, e a gente escreve.” Cito este fragmento porque gostaria de sublinhar que a escrita introduzida por mulheres na literatura é um tipo de escrita que está ligado ao não-saber e ao não-poder. E que portanto, num certo sentido, é oposta aos requisitos do sucesso. No interior dessa perspectiva, o escritor exerce o seu ofício a partir do momento em que está perdido, em que já não tem mais nada a perder e pode aceitar a solidão que a escrita impõe. Clarice Lispector, como Duras, valoriza o não-saber. Em A hora da estrela, o narrador diz: “A menina não perguntava por que era sempre castigada. Mas nem tudo se precisa saber, e não saber fazia parte importante da vida”. Essa valorização do não-saber é decorrente do fato de que essas escritoras se deixam preceder pela palavra para escrever, elas aceitam errar e se surpreender. É uma posição inteiramente diversa daquela de quem escreve para telenovela ou para cinema. Nesse caso, o escritor antes faz a intriga e depois redige. Para concluir, eu diria que não existe uma literatura feminina e uma literatura masculina. O que existe é um modo de proceder privilegiado pelas mulheres, que não é exclusivo delas. Se pensarmos, por exemplo, no monólogo interior de Molly Bloom, nos diremos que Joyce escreveu deixando-se preceder pelas palavras e foi tão longe quanto uma escritora da estatura dele poderia ter ido. A cisão que hoje existe na literatura é entre a escrita que é produzida pelo não-saber e se situa do lado da poesia e a outra, que responde aos requisitos do mercado.
P: Você se vale de uma linguagem romântica para expressar a sexualidade das personagens femininas. Em A paixão de Lia, por exemplo, há um fragmento em que se lê: “Me beije, me envolva e se afaste para olhando me apalpar o seio-cabaça da direita, beber depois o mel do bico intumescido no seio esquerdo, o do coração”. Gostaria que você comentasse a sua linguagem.
BM: Há hoje uma dissociação entre sexo e amor, que é contrária ao sexo passional, ao sexo do Macunaíma, por exemplo. O Macunaíma para no meio da transa. O sexo, no caso dele, está ligado à brincadeira, ao riso. Mas, quando escrevi A paixão de Lia, queria responder à literatura erótica libertina do século XVIII, cujo modelo da sexualidade feminina não cabe nessa fôrma – o modo feminino é indireto, ele é, por assim dizer, barroco. A literatura dos libertinos é governada pela paixão do orgasmo. O corpo está dissociado da paixão amorosa. Todos estão sujeitos a imperativos: “Faça isso, faça aquilo, execute”. Eu achava que era preciso dizer não a esses imperativos, como aos da sexologia. Foi o que fiz no Paixão de lia. Quando comecei a escrever o romance, não sabia para onde ele ia e me deixei levar pelas palavras. Descobri que a sexualidade feminina tende a ser inclusiva, há espaço para o amante, o simulacro do amante, a amante etc.
P: Desde O sexophuro,a questão da sexualidade é central no seu trabalho.
BM: Verdade. Sobretudo por causa do enigma da sexualidade. O sexophuro é uma arqueologia da feminilidade e A paixão de Lia é uma arqueologia do desejo. Mas já no Sexophuro eu havia topado com o caráter inclusivo da sexualidade feminina, o que é uma transgressão. Basta, aliás, a gente escrever sobre o desejo para transgredir. E a literatura existe para fazer o não-dito e o que não pode ser dito acontecer.
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Entrevista concedida ao escritor Deonísio da Silva em 1997