O livro dos que pulam para lembrar

O livro dos que pulam para lembrar

 

José Castello (1)

O Carnaval é sempre apresentado como a festa do esquecimento, em que os mais felizes são os mais desmemoriados. A psicanalista Betty Milan pensa que ele é também a festa da recordação, o império da memória. Para provar esta tese, está lançando o livro Brasil, os bastidores do Carnaval, textos poéticos que, em vez de serem ilustrados, ilustram fotos de Jorge Bodanski e Jorge Hirata feitas em 1979 e 1981 nos barracões das escolas de samba. Não é gratuita a ênfase na imagem. Betty optou por estudar as alegorias justo porque elas colocam em cena, melhor que qualquer outro quesito, as representações da folia.

As quarenta fotos do livro mostram alegorias de dragões orientais, faraós do Egito, deuses indianos, máscaras de samurais, esfinges da Mesopotâmia, o sorriso do rei Momo. Símbolos arrancados de culturas dos cinco continentes, que por si desautorizam o preconceito de que o Carnaval seria a festa da pureza nacional. Betty propõe: “Ao assimilar símbolos de todas as culturas, o Carnaval neutraliza a fantasia do Descobrimento, a de que o Brasil seria o sítio do Paraíso”. A psicanalista pensa que a postura oficial tende sempre a apresentar o Carnaval como um ritmo nacionalista e xenófobo. O que é aceitar a posição periférica em que o capitalismo internacional sempre isola o país. “É a política da clausura”, diz, “mas no sambódromo o que se vê não é a clausura, é a abertura.”

O Carnaval, no livro de Betty, não é mostrado como um fato exótico, distante, folclórico. Algo em que o país não reconhece sua identidade, mas sua estranheza. Quatro dias fantasiosos e estranhos. “Procuro mostrar, ao contrário, que ele é uma festa em que realizamos nossa identidade, à medida que nos universalizamos.” A maior prova de que o Carnaval é visto como quatro dias extravagantes após 361 dias normais é a destruição completa das alegorias depois da festa. Um ato equivalente ao de destruir esculturas após um vernissage. “Este desperdício sistemático deve ser visto como uma manifestação de racismo”, entende Betty. “Existe maneira mais violenta de praticar o racismo do que deixar tudo isso se perder? O que está por trás do racismo é o ódio à cultura mestiça, na qual não queremos nos reconhecer.”

Betty propõe, então, um museu das alegorias, até porque, em sua última viagem à Europa, ouviu a notícia de que, em Bruxelas, estudiosos de arte pretendem fundar um pequeno museu apenas para arquivar peças do Carnaval do Rio. “O Carnaval é a festa da memória, nele recordamos tudo aquilo que nos funda enquanto nação. É a grande epopeia brasileira. Só que, como se realiza através do samba, da dança e do canto, não é reconhecido como epopeia.” A psicanalista prepara-se, agora, para fazer uma pesquisa sobre o futebol. A posição oficial é, por hábito, exibir o Carnaval e o futebol como faces de nosso folclore, nunca como eventos fundadores do Brasil. “Minha posição é a de tratar estes temas fora do âmbito do exotismo. Mesmo porque nós jamais escaparemos dessas imagens, e não haveria razão alguma para escapar delas.” O livro de Betty pode ser lido, então, como um guia de viagem pela memória brasileira. Desagradará apenas aos que teimam em ver o Carnaval como uma nega maluca estranha, que nos diverte muito, mas com quem não temos laços.

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1. José Castello é jornalista e crítico literário, autor de vários livros, como Vinicius de Moraes: o poeta da paixão (1993), Inventário das sombras (1999), João Cabral de Mello Neto: o homem sem alma / Diário de tudo (2006). Estreou no romance com Fantasmas (2001). Resenha publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23/01/1988.