O legado de Jacques Lacan

O legado de Jacques Lacan

Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
foi publicado com o mesmo título no Jornal da Tarde, 11/09/1981

Eles me chamavam o obscuro e eu habitava o clarão.
SAINT-JOHN PERSE

Jacques Lacan está morto. O efeito da frase é um silêncio a que no entanto não posso me entregar. Lacan não nos obrigava sobretudo a dizer? não desautorizava nas suas sessões o silêncio, exigindo imperativamente a fala, impedindo-nos a parada e forçando o desejo contra a resistência a se manifestar? Hoje, quando o lugar do analista já não será ocupado por Lacan, qual é o legado do mestre?

O vazio precisamente, o real da sua fala, exigindo de cada um de nós, analisandos ou discípulos, uma fala que diga o que se transmitiu através do seu longo ensinamento, do seu estilo, que sobretudo impunha uma ética nova. Primeiramente, uma releitura da teoria psicanalítica para reencontrar o sentido da obra de Freud, restituir à palavra a importância que tinha no momento originário da descoberta do inconsciente, insistindo na ideia de que a prática psicanalítica é função da palavra e seu campo, o da linguagem. Por isso mesmo, ao pronunciar a dissolução da Escola Freudiana de Paris, Lacan diria que a diz-solução era seu Eureka!, alegando que ali o discurso psicanalítico perdera a virulência suposta pela verdade. A Escola soçobra na ilusão do grupo, esquecida do ato de fundação, do que Lacan então dizia: “Fundo, tão só quanto sempre estive na minha relação com a causa psicanalítica, a Escola Freudiana de Paris…”.

Diz-solução porque os membros já não faziam jus à razão da sua existência, uma prática que está sempre por se fazer, na medida em que a psicanálise, supondo o estilo de cada um, é de certa forma intransmissível e deve, como afirmava Lacan no último congresso realizado em Paris, ser reinventada pelos psicanalistas.

Releitura da teoria que teve na prática consequências decisivas, fazendo do psicanalista não um censor, um diretor de consciências, mas alguém que existia para autenticar o desejo alheio, cadaverizando os próprios sentimentos para que a cura pudesse se efetivar e o sintoma deixasse de se repetir. Não fosse isso, como explicar a transferência que Lacan suscitava em toda a parte? O amor e o ódio que o envolviam? Ele era suposto saber e, sabendo-se objeto desta suposição, prestava-se como analista à diz-solução da transferência, propiciando aos seus analisandos a conquista da mais dura renúncia — a do gozo da ignorância.

Prontidão é o termo que serve para qualificar o estilo da sua prática, pois, à diferença da maioria dos outros analistas, ele procurava desritualizar o mais possível, marcando as sessões segundo a urgência de cada um, dispondo-se sempre a escutar, exprimindo claramente seu desejo de que o analisando viesse até ele para desejar. A resistência na análise, dizia Lacan, não é do analisando, é do analista que produz as defesas e transforma a situação analítica numa luta de prestígio e numa forma de exercício de poder, quando ao analista só cabe dirigir a cura, nunca o analisando.

Durante 37 anos, Lacan susteve seu ensinamento, colocando-se diante do auditório como o analisando diante do analista, exigindo de si mesmo um discurso comprometido com o real que ele, aliás, dizia ser o seu sintoma. Um ensinamento que muitas vezes nos parecia ininteligível e, entretanto, sempre deixava uma frase em que podíamos nos reconhecer — era enigmático, porque, como o inconsciente, ele se queria decifrado. Daí o conselho que Lacan dava aos jovens analistas: fazer palavras cruzadas.

Mas sua teoria e sua prática clínica são indissociáveis da luta no interior do movimento psicanalítico internacional, um percurso em que ele repetidamente disse “não” à instituição em nome das exigências do discurso psicanalítico. Primeiro em 1953, quando a Sociedade de Psicanálise de Paris pretendia fazer da sua prática um monopólio dos médicos. Foi a cisão, de que resultou a Sociedade Francesa de Psicanálise, à qual a Internacional de Psicanálise recusou filiação, alegando a prática clínica de um de seus membros, o Dr. Jacques Lacan — por ter instituído a sessão curta, contrariando a sessão de tempo fixo tradicional —, e exigindo para reconhecer a nova sociedade que ele se comprometesse a calar. Foi a excomunhão, a que se seguiu uma ruptura no interior da nova sociedade e a fundação em 1964 da Escola Freudiana de Paris, hoje extinta.

Um trajeto que evidencia, em vez de escamotear, a contradição fundamental entre o discurso psicanalítico e os grupos através dos quais ele se transmite, entre a sua ética e a do poder.

Sendo uma resposta específica a um sofrimento, o que interessa à psicanálise não é o sucesso, mas o que falha, o lapso onde o sujeito se diz e a verdade o encontra.
Lacan está morto, tornou-se agora o ancestral, a quem é preciso pagar uma dívida, mantendo viva sua memória nos atos que nos constituem, na capacidade de dizer “não” à submissão exigida pelo poder, de denunciar a abjeção que se pratica em nome da psicanálise e ainda de herdar e assumir a própria história.