O labirinto da saudade

O labirinto da saudade

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado
originalmente como “O que a aventura fez dos
portugueses”, Jornal da Tarde, 28/01/1989

  1. Quão portugueses nós, brasileiros, somos! Quão brasileiros são eles! Isso foi o que eu, me surpreendendo, redescobri com O labirinto da saudade, de Eduardo Lourenço, prêmio de melhor ensaio europeu.

Somos um povo de pobres com mentalidade de ricos, diz ele, acrescentando que mesmo a iminência de uma catástrofe não muda o estilo da classe política portuguesa, cuja “vocação ostentatória e boêmia (…) ultrapassa os limites do entendimento”. Já por isso nós brasileiros a ele nos igualamos. O presidente não foi a Nova York negociar a nossa dívida externa numa comitiva de mais de cem pessoas?

Tal pai, tal filho. Portugal e Brasil, o velho e o novo rico sem dinheiro, ambos vítimas de uma elite herdeira da tradição do não-trabalho. Daí, segundo Lourenço, a célebre crença lusitana nos milagres e o irrealismo permanente da imagem que os portugueses têm de si. Portugal sempre teve o sentimento de estar garantido no seu ser nacional por um outro poder, superior à simples habilidade e astúcia humanas, algo como a mão divina. Sim, sendo brasileiro, Deus também é português, e o que lá vigora é a certeza de uma proteção absoluta, que antes serviria para mascarar a condição de ser histórico intrinsecamente frágil.

Mas por que tal fragilidade? Portugal não conquistou um grande império? O labirinto da saudade explica que o mais interessante não é o que o Império fez dos portugueses, tornando-os verdadeiramente outros, como os ingleses ou os holandeses, mas o que deles não pôde fazer. Passado o período eufórico em que a rua Nova dos Mercadores foi um cruzamento de raças e de mercadorias em Lisboa, o país ficou à margem da sua aventura imperial, que só ocasionalmente foi assumida com plena consciência colonizadora. Tudo se passou como se a conquista tivesse sido uma espécie de acidente inevitável.

Do mesmo modo, resta ao Brasil tomar posse do seu território, receber efetivamente o que num só grito herdou de Portugal. Nós, como eles, desvalorizamos o que temos e só insistimos no que é do outro. Isso é patente na esfera cultural. Citar um autor nacional é tão raro entre brasileiros quanto entre portugueses. A referência nobre é sempre a estrangeira, e nós colocamos no papel do criador quem introduz o alógeno na cultura. Tal é o poder do divulgador de ideias alienígenas que o tomamos por autor! Na tradição do bacharel, o império luso-brasileiro é hoje o do professor.

Que Portugal se debruce sobre si mesmo e se leve a sério, enseja o livro merecidamente premiado, insistindo em que se deixe o povo se instruir pela história e se veja como é, através da redescoberta de suas verdadeiras riquezas, potencialidades e carências, até para que venha a assimilar o elemento perturbador, característico da agressividade tecno-científica, de modo a não perder sua identidade senão “alma”. Na falta do conhecimento daquilo que não pode abandonar sem mutilação imediata e futura, o povo não terá como fazer as escolhas decisivas para o seu destino. Consciência de si é a palavra de ordem de O labirinto da saudade, que adentramos reconhecendo, nas imagens de Portugal, o Brasil alheio ao que é, indiferente aos seus valores e, por isso, subdesenvolvido. Não o Brasil todo, obviamente, mas todo o Brasil oficial, o país onde, como dizia Eça de Queirós, não há brasileiros, só doutores.

Que Eduardo Lourenço seja editado e lido por nós, que se tornem mais conhecidas as raízes do nosso imaginário, e o diálogo da cultura consigo mesma se estabeleça no plano proposto pelo ensaísta.

Possamos nós desvelar os mitos de que somos vítimas, para um dia dizermos com alguma base na realidade que o Brasil é nosso, e seja inteiramente verdadeira essa frase que tanto repetimos e nos é tão cara.