O impossível e o feminino (1981)
Betty Milan
Este artigo integra o livro
O saber do inconsciente / Trilogia psi
“Quem sou eu?” Esta é a questão de todo ser humano. Para responder a ela, os homens e as mulheres fazem um percurso diverso. Aqui me interessa o feminino. De que modo o problema da identidade se coloca para uma mulher e é por ela vivido nas várias etapas da sua existência? A que fantasias se vê obrigada a renunciar para tornar-se sujeito de sua história?
Focalizo a mulher, e não a menina. A identidade desta é função do pai, de quem a menina recebe o nome, e da mãe, com quem ela se identifica querendo ocupar-lhe o lugar. Resulta por um lado de uma dádiva e por outro supõe uma rivalidade, que faz da menina a Outra — com maiúscula, porque não se trata de uma outra, outrinha, e sim de uma outra especial, a amante — relativamente à mãe, levando-a a viver no culto do pai. Não só porque é ele que, simbolizando a lei, lhe dá a liberdade de sonhar, mas ainda por não desmentir a fantasia da menina sobre o próprio sexo, a de ser um menino, ter sido dotada — como imagina que a mãe foi — de um pênis. Deixar a infância é deixar de poder se reconhecer no menino, abrir mão da fantasia de casar-se com o pai, e projetar-se no casamento ou na carreira, renunciando nos dois casos a uma identidade certa, dada para a vida toda e que nada ameaça a mulher de perder.
A via sendo a do casamento, a identidade feminina depende do marido que, entretanto, só dá o nome em troca de um filho garantidamente seu. Ou seja, casando-se, a mulher estará sujeita a dois credores: o marido, a quem deve o filho, e este, a quem deve o pai. Quanto ao homem, sua identidade atual não depende do casamento, mas o futuro dela sim e nesta medida também ele terá dois credores: a esposa e o filho.
Assim, o casamento faz do cônjuge um credor, amarrando necessariamente a sexualidade. A mulher, para não ameaçar a identidade do marido, só pode vivê-la na ordem do dever e este, podendo viver sua sexualidade fora, terá que restringi-la aos limites da hora marcada, fazer do sexo uma forma de bater o ponto. Isto é, dentro e fora, ainda que ele não o suponha, estará cumprindo um dever. Don Juan não passa de uma ilusão de liberdade.
Disso resulta que nem a ele nem a ela é dado encontrar realmente o outro sexo e, assim, viver o próprio. Como esta é a regra e o casamento deixou de ser apenas uma instituição para ser uma promessa de felicidade, tornou-se uma instituição falida, em que a mulher é a memória de um dever. Nenhum desejo lhe é suposto, nenhum direito de se alterar ou qualquer imprevisibilidade. Seu papel é o de esperar e soterrar o desejo nos afazeres domésticos. Mas, para aceitar as ausências do marido, precisará ter renunciado à sua presença, ter-se tornado sinônimo da casa ou da ordem que sustenta o casamento. Daí o fascínio da esposa pela Outra, simultaneamente idealizada e abominada — a Outra, em quem a mulher, por um lado, recupera imaginariamente o lugar ocupado na infância e, por outro, vê aquilo que a ameaça como esposa, posição que desde a infância, como a mãe, ela queria ter.
Assim, a identidade feminina se constitui através da Outra, num percurso em que o seu significado varia.
Numa primeira instância, ocupando o lugar dela, a mulher ainda menina não se reconhece na Outra. Depois, já casada, encontra-a como que pela primeira vez, como se fosse um enigma, passando daí a cultuá-la. Ama-a odiando-a, endeusa-a, fazendo dela o inexplicável a que se agarra para afastar de si o encontro consigo mesma como ser sexuado, isto é, em falta do outro sexo, imerso na sua incompletude.
A via não sendo a do casamento, porém a da carreira, a questão da identidade se coloca diversamente. Trata-se aí de conquistá-la através do trabalho e, para ter um nome, a mulher estará agora sujeita a outro credor — o público —, ao qual serve e do qual recebe a imagem em que se reconhece. Mas o público nada mais é do que a presença de uma ausência, o caminho que depende dele é solitário, e a identidade resultante é mortífera como a de Narciso que, vendo-se numa fonte, é tomado de amores pela própria imagem, procura atingi-la sem conseguir, esquece de comer e beber, consumindo-se na adoração de si mesmo.
Se a solução da carreira é impossível, é que nela todo outro é instrumento de um projeto que nega o encontro, não há interlocutor verdadeiro e a mulher — como Narciso, que era adorado por Eco — só escuta o próprio nome, até o limite de viver a identidade como uma alucinação, um efeito puramente imaginário, se não um engodo. Aqui, ela, que se queria a Outra, encarnava como o andrógino o feminino e o masculino, considerava-se onipotente, se vê, como ele, obrigada a encarar o corte que separou um sexo do outro para entregá-lo ao Amor, ao desejo impossível de ser Um.
Agora, a busca será a do próprio desejo, a tentativa será a de obrigar o eu a se dizer e o risco de não saber, na celebração de uma identidade sempre por se dar — desafio assumido de encontrar para perder. Daqui, a única saída é a morte, mas, tendo renunciado à fantasia de ser A Mulher para se tornar apenas uma, ela, que estava perdida, acha enfim sua porta de entrada para a vida.