O gosto da surpresa
Revista Veja, 29/09/2010
Nada é melhor do que se surpreender, olhar o mundo com olhos de criança. Por isso as pessoas gostam de viajar. Nem o trânsito, nem a fila no aeroporto, nem o eventual desconforto do hotel são empecilhos. Só viajar importa, ir de um para outro lugar e se entregar à cena que se descortina. Como, aliás, no teatro.
O turista compra a viagem baseado nas certezas que a agência de turismo oferece, mas ele se transporta em busca da surpresa. Porque é dela que nós precisamos mais. Isso explica a célebre frase «Navegar é preciso, viver não» errôneamente atribuída a Fernando Pessoa pois a frase data da Idade Média.
Agora, não é necessário se deslocar no espaço para se surpreender e se renovar. Olhar atentamente uma flor, acompanhar o seu desenvolvimento do botão à pétala caída, pode ser tão enriquecedor quanto visitar um monumento histórico.
Tudo depende do olhar. A gente tanto pode olhar sem ver nada quanto se maravilhar. Isso é função de uma disposição subjetiva, que é natural na criança e o adulto precisa conquistar, suspendendo a agitação da vida cotidiana e não se deixando absorver por preocupações egocêntricas. Como diz um provérbio chinês, a lua só se reflete perfeitamente numa água tranquila.
O que nós vemos e ouvimos depende de nós. A meditação nos afasta do clamor do cotidiano e nos permite, por exemplo, ouvir a nossa respiração. Quem escuta com o espírito e não com o ouvido, percebe os sons mais sutis. Ouve o silêncio, que é o mais profundo de todos os sons como bem sabem os músicos. Numa das suas letras, Caetano Veloso diz: «…melhor do que o siêncio só João». Porque o silêncio permite entrar em contacto com um outro eu, que só existe quando nos voltamos para nós mesmos.
Há milênios, os asiáticos, que valorizam a longevidade, se exercitam na meditação, enquanto nós ocidentais evitamos o desligamento que ela implica. Por imaginarmos que, sem estar ligado não é possível existir, ignorarmos que o afastamento do circuito habitual propicia uma experiência única de nós mesmos, uma experiência sempre nova.
Desde a Idade Média muitos séculos se passaram, porém o lema dos navegadores continua a ser atual pois se surpreender é preciso. A surpresa é a verdadeira fonte da juventude, promessa de renovação e de vida.