O desafio da liberdade
Revista Veja, 02/03/2010
Quem se casa por amor aceita o desafio de não mudar de ideia durante décadas. O que é obviamente problemático porque a fidelidade é uma das condições do amor mas, pela natureza do desejo, a infidelidade nos ronda. Queira ou não, o objeto do desejo pode mudar.
Nós estamos expostos à paixão e nem sempre é possível resistir a ela. A exemplo disso, um senhor bem casado de setenta anos que se apaixona loucamente por uma moça e me escreve perguntando se deve ou não se declarar. Posso dizer que não? A paixão propicia a ele a ilusão da juventude e ele talvez não tenha como renunciar sem consequências graves. Quando Dom Quixote, pressionado pelos familiares e amigos, abriu mão de ser um cavaleiro andante e aceitou ser Dom Quijano, ele morreu.
A paixão suspende a realidade e nós desejamos isso. Todos nós temos algo da Bovary, a encarnação mesma do adultério. Ao escrever o romance, Flaubert se queixou inúmeras vezes: «A Bovary me aborrece», «Este assunto burguês me enoja», «Maldita ideia de escolher um tema como este». No entanto, ao terminar o livro, ele declarou: «A Bovary sou eu», tornando pública a sua identificação com a personagem.
Quando o romance foi editado, o escândalo foi tal que processaram Flaubert por ofensa à moral pública e à religião. Acusavam-no de ter glorificado o adultério, além de ter descrito cenas de sexo. Hoje, nenhum escritor seria processado pela mesma razão. Já ninguém ignora que, além de eterno, o drama da Bovary, é moderno.
O descompasso entre o ideal do amor e a realidade é tal que o adultério está sempre no ar. O «juntos para sempre» é um voto que pode ou não se realizar pois uma paixão inesperada transforma os amantes em ex-amantes.
Como diz Octavio Paz, no grande livro que ele escreveu com mais de oitenta anos, A dupla chama, o amor é uma paixão que quase todos veneram e poucos vivem realmente. A exclusividade é a exigência ideal do amor, porém a infidelidade é comum na vida dos casais.
Claro que entre a exclusividade e a promiscuidade há uma série de gradações e de nuances. A infidelidade pode ser consentida ou não, frequente ou ocasional. Quando é consentida e praticada por só um dos cônjuges, provoca sofrimento no outro. Quando os dois cônjuges são consentidamente infiéis, há uma baixa de tensão passional e a tendência é relativizar a relação. Daí, não se trata mais de paixão amorosa e sim de cumplicidade erótica. Porque o verdadeiro amor é particularmente exigente, ele é uma forma de ascetismo, enquanto a libertinagem é uma forma de resignação.